expresso.ptJosé Soeiro - 5 jun. 23:18

Obviamente demitam-se!

Obviamente demitam-se!

Opinião de José Soeiro

Não vou repetir o que escrevi num outro lugar sobre o comportamento repugnante da Administração da Casa da Música. Os precários, a maioria a falso recibo verde, foram primeiro tratados como se não existissem e, quando começaram a ser mais visíveis por se terem organizado e terem começado a falar, foram pressionados, vítimas de assédio moral, filmados quando fizeram uma vigília (denúncia feita por escrito pelos trabalhadores e nunca desmetida) e dispensados - por retaliação - das atividades já agendadas com eles para junho. O que aconteceu é gravíssimo e envergonha a cidade, a cultura e o país.

Até hoje, ninguém da direção da Casa da Música deu a cara publicamente por estas decisões. A Casa da Música tem um Diretor-Geral, Paulo Sarmento e Cunha, que se recusa a comentar o que faz. E tem um Conselho de Administração, com sete membros (2 nomeados pelo Governo, um pelo município e área metropolitana e outros 4 por privados) que, segundo os Estatutos, reúne mensalmente, mas tem permanecido em silêncio, apesar de ter como competências, entre outras, “contratar e dirigir o pessoal da Fundação”.

Quem é esta gente? Como é possível que este Conselho continue em silêncio e não seja escrutinado? E o Governo e a Câmara, que nomeiam uma parte do órgão, também não dizem nada? A Casa da Música é financiada em dois terços pelo Orçamento do Estado (mais de 9 milhões de dinheiro dos contribuintes em cada ano), mas quem a dirige parece sentir-se impune perante a lei do trabalho, a Constituição que garante a liberdade de organização e de expressão, e sem responsabilidades perante a comunidade que os financia e que deveriam servir.

A gestão da Casa da Música é um espelho de como muitas destas instituições (Serralves é outro exemplo, e parece que fez o mesmo com 21 precários do Serviço Educativo) são dirigidas: por gente que vem maioritariamente do mundo dos negócios, que replica as piores práticas empresariais, que pouco tem a ver com a cultura, que faz uma rotação endogâmica nestes e noutros cargos de poder, que nem fala com os trabalhadores e que se está nas tintas para as suas condições de vida e de trabalho. De quem falamos, afinal?

O Diretor-Geral da Fundação Casa da Música chama-se Paulo Sarmento e Cunha. Executa as decisões do Conselho de Administração ou toma decisões sem dar conta ao Conselho? Aparentemente, não se sabe bem. Mas é quem, no quotidiano, exerce o poder na instituição. Já tinha estado na Porto 2001 e desde 2007 que tem funções na Casa da Música, primeiro como diretor administrativo, depois como Diretor-Geral. É um dos rostos principais desta vergonha. Recusa falar com os jornalistas sobre o que está a acontecer.

O presidente do Conselho de Administração chama-se José Pena de Amaral. Vem do mundo da banca: foi administrador do BPI e da Allianz, pertencia ao Conselho de Administração do Banco de Fomento Angola até rebentar o escândalo do Luanda Leaks. Mas esteve também na política, como chefe de gabinete do Ministro das Finanças do governo do Bloco Central (PS-PSD, em meados da década de 1980), chefiado por Mário Soares.

As duas pessoas nomeadas pelo Governo para o Conselho de Administração são Teresa Moura e José Luis Borges Coelho.

A primeira foi Secretária de Estado dos Assuntos Europeus no primeiro governo de António Guterres. O mais curioso é, no entanto, que esta pessoa, que atualmente representa o Estado no Conselho de Administração, estava antes no mesmo Conselho mas em representação da EDP. Como a empresa deixou de poder nomear um membro, o Ministério da Cultura nomeou-a pela sua quota, apesar de Teresa Moura continuar a ser chefe de gabinete do Conselho Geral e de Supervisão da EDP…

O outro representante do Estado, nomeado pelo Ministério da Cultura, é o conhecido e respeitado maestro portuense José Luis Borges Coelho, a única pessoa com ligação ao mundo da música que faz parte do órgão. Borges Coelho assume também as funções de vice-presidente do Conselho de Administração. É conhecido pelo seu longo e consistente envolvimento cívico e político (entre outras coisas, foi mandatário e depois eleito da CDU na Assembleia Municipal do Porto). Os trabalhadores dizem que, de todo o Conselho, foi o único que os contactou, a título individual, manifestando solidariedade.

Do Conselho de Administração fazem ainda parte Rita Mestre Mira Domingues, mais uma pessoa vinda do mundo empresarial, fazendo parte dos órgãos de gestão da BA Glass, holding que foi presidida por Carlos Moreira da Silva (Sonae Indústria), e que agora tem à frente o próprio Paulo Azevedo; e António Marquez Filipe, outro empresário, neste caso ligado ao negócio do vinho do Porto, sendo administrador da Symington Family Estates, a maior proprietária de vinhas no Douro, que vende 24 milhões de garrafas por ano.

Os restantes membros são Lobo Xavier e Luis Osório.

António Lobo Xavier é conhecido do público como comentador televisivo na “Circulatura do Quadrado” (com Pacheco Pereira e Jorge Coelho), foi deputado do CDS em vários mandatos (chegou a ser líder parlamentar do partido), faz parte do Conselho de Estado por indicação do Presidente da República, é gestor da Sonaecom e está, ainda e paralelamente, no Conselho de Administração de outras grandes empresas, como a Mota-Engil ou a NOS. É uma espécie de figura omnipresente deste tipo de órgãos. Esteve, por exemplo, nas direções da Associação Comercial do Porto (a associação que representa a burguesia industrial e comercial da cidade), do Futebol Clube do Porto ou da Fundação de Serralves (na segunda metade dos anos 2000), cujas práticas laborais têm sido, como se sabe, semelhantes às da Casa da Música.

Luís Osório é um triste caso de estudo. É deputado municipal do PSD e foi o escolhido de Rui Moreira para representar o município. A sua nomeação gerou um tumulto no próprio partido. O PSD veio dizer que não lhe reconhecia qualquer experiência, competência ou ligação ao sector da cultura, e que a escolha era uma “uma manobra de Rui Moreira de dividir para reinar". A acusação foi aliás mais longe. Como Moreira não tem maioria na Assembleia Municipal, na concelhia do PSD houve quem dissesse aos jornais que a nomeação de Osório era ��mais uma tentativa do presidente da Câmara comprar votos com convites, como já fez no passado”. A reação de Osório dá vergonha alheia: disse que aceitava o convite por considerar ser “importante que o PSD esteja representado nas mais marcantes entidades da cidade”. Só que não é suposto, obviamente, que o representante do município represente um partido nas decisões de gestão da Casa da Música! Tudo mau de mais…

São estas pessoas que tomam decisões na Casa da Música. São elas, quer se queira quer não, as responsáveis em última instância pelo que ali acontece – e já acontece há demasiado tempo. Quem tomou as decisões em concreto, quem dispensou as pessoas, quem contratou um operador de vídeo para andar a filmar os precários para depois a Administração retaliar contra eles? Sinceramente, não sei. Mas o que se passa é grave, muito grave. Quem tem responsabilidades e se opõe a isto, tem a obrigação de falar já publicamente e de se demitir de uma Administração com estes comportamentos miseráveis. Quem decidiu e apoia estas práticas, tem a obrigação de ser demitido por quem tem o poder de fazê-lo. E sim, se os próprios não o fizeram ainda (porque já mostraram do que são capazes), o Estado pode requerer a sua destituição. Na verdade, já devia tê-lo feito. É uma questão de decência.

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