expresso.ptGonçalo M. Tavares - 4 jun. 18:57

Diário da Peste. Um homem afogou-se em Deus

Diário da Peste. Um homem afogou-se em Deus

Opinião de Gonçalo M. Tavares

Diário da Peste,
3 de Junho

Protestos podem levar a novos surtos de Covid-19, alerta a Saúde Pública dos EUA.
Rali da Finlândia cancelado.
Mais de 5 mil índios da Amazónia infectados.
Propagação está a acelerar no Irão.
Do campo dizem: dois melros e a doença chegou à aldeia.
Dois melros, 4 infectados.
Natureza que canta perde 4-2 para a natureza que assusta.
Na aldeia, o número quatro é já número alto.
Os números não são todos do mesmo tamanho.
Vais da cidade para o campo e um melro já é som suficiente para começares a pensar em coisas inúteis.
Reabertas todas as mesquitas na Faixa de Gaza.
A Federação de Nadadores-Salvadores recomenda: os vigilantes devem privilegiar o salvamento “sem entrar na água” .
Salvar sem entrar na água.
Salvar sem entrar no fogo.
Salvar sem entrar na terra e salvar com máscara (bem protegido do ar).
Quem salva fica longe de quem está em perigo.
Salvar à distância.
Arrabal, Topor e Jodorowsky criaram nos anos 60 o movimento artístico Pânico.
“Estou em Pânico e divirto-me”, era o lema do grupo.
Salvar quem se afoga sem molhar os pés não é fácil.
Voltámos aos salvamentos místicos.
Um inquérito imaginado na minha cabeça.
Se Deus é a água da piscina, a que a altura está a água da tua piscina?
Se Deus é água do mar, até que a altura avanças?
Pões-te em bicos de pés e ficas com a cabeça à tona?
Ficas muito tempo debaixo de água, sem respirar?
Nadas? E se sim, rápido ou lento?
Tens medo de afogamento?
Trudeau fica “21 segundos em silêncio antes de responder a pergunta sobre Trump”.
Uma intervenção à Cage - mas um silêncio bem mais modesto.
4 minutos e 33 segundos menos 21 segundos igual a 4 minutos e 12’.
Vitória evidente de Cage.
Os herdeiros de Cage. Uma vez processaram alguém por ter feito uma peça de alguns segundos de silêncio.
O silêncio era de Cage. Não se rouba assim o subtil.
No xadrez, “uma menina húngara é capaz de ganhar aos campeões”.
Uma das vantagens do xadrez é que não há retórica.
Tudo é silêncio e acto útil.
Não adianta muito abanares os pés ou a cabeça.
Tens de mexer uma peça e depois aguardar.
Uma boa síntese, mas a vida é um pouco mais móvel e imprevista.
Mais de 1.000 de pessoas deitadas frente ao Capitólio. Nem o som de um melro.
Itália abre circulação interna e fronteiras.
O vazio e o silêncio não são património do Oriente. Mas o Ocidente utiliza-os como um perfeito desastrado.
Deixa cair o silêncio ao chão e com isso faz uma barulheira.
Gosta tanto do vazio que instala no seu centro monumento e festa.
“O homem ocidental é metade, o homem oriental é metade.
O meu objectivo é construir um homem inteiro” - dizia Osho, o místico indiano (oriente) dono de vinte Rolls-Royce (ocidente).
Derek Chauvin pousou oito minutos o joelho sobre o pescoço de Floyd.
Na parte final, mais de um minuto sem ouvir uma palavra de quem instantes antes pedia socorro.
Entre o socorro e a mudez sem ar instala-se por vezes um instante decisivo.
Instante decisivo, termo da fotografia e da História privada e do mundo.
Acusado: homicídio em segundo grau.
É preciso protecção para a chuva ácida que aí vem.
Rilke na sua torre fazia poemas; no século XXI eles virão de bunkers.
Um homem afogou-se em Deus.
Outro não molha sequer os pés.
Como está a água hoje - quente ou fria?

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