expresso.ptIsabel Moreira - 4 jun. 21:23

André Ventura não é racista

André Ventura não é racista

Opinião de Isabel Moreira

Na última quarta-feira calhou-me o parecer relativo ao projeto de lei do CHEGA que se apresenta com o propósito de salvaguardar que, no que respeita à matéria da discriminação com base na origem racial, étnica, cor, nacionalidade ou ascendência de um indivíduo, o direito fundamental à liberdade de expressão não se encontre limitado pela existência daquilo que identifica como um “novo paradigma social” em “que tudo o que envolve minorias desencadeia necessariamente um processo de racismo”, bem como por uma visão generalizada e que rejeita de que “os atos racistas não partem sempre do mesmo grupo étnico e não têm sempre como vítima um determinado grupo étnico”.

André Ventura, na linha de Trump, defende que este paradigma e esta visão devem ser combatidos, sob pena de poderem “provocar na sociedade uma divisão, cujas consequências a longo prazo poderão ser catastróficas.”, pelo que apela a um debate “descomprometido de quaisquer agendas políticas e centrado nos reais problemas que existem e não em putativas problemáticas que mais não são, no fundo, do que perspetivas político-ideológicas”, afirmando que em Portugal não existe um problema de racismo estrutural.

Neste contexto, a iniciativa legislativa propõe revogar a Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, que “Estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem” e a Lei n.º 134/99, de 28 de Agosto, que “proíbe as discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica”.

Mais se propõe, em nome da liberdade de expressão, dar uma bofetada no artigo 240º do Código Penal (discriminação e incitamento ao ódio e à violência).

A revogação da Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, levará, entre outras consequências, à extinção da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial pois, no entendimento do proponente, “não há qualquer razão adicional para que se gastem vários milhares de euros do erário público com a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, uma vez que cabe ao Ministério Público a investigação deste tipo de crime que, como já dito anteriormente, se encontra tipificado em sede de Código Penal.”.

Na apresentação do Parecer, tive oportunidade de explicar que em 2020 a reflexão sobre o racismo já está, felizmente, bastante avançada, apesar dos discursos negacionistas. Em 2020 sabemos que falar de racismo não aumenta o racismo e que devemos assumir a existência de um fenómeno objetivo que é grave e que merece o nosso combate coletivo.

O racismo foi globalizado. O campeonato de que sociedade é mais ou menos racista não faz sentido. Todas as sociedades que participaram do processo colonial ou dele beneficiaram são-no. É estrutural e histórico. A nossa Constituição, por isso mesmo, identificou o fenómeno como presente na sociedade e elegeu a “raça” como uma das categorias especialmente atingidas pela discriminação, pelo que beneficiando da especial presunção do nº 2 do artigo 13º (princípio da igualdade). Não o fez, certamente, imaginado uma simetria de discriminações entre pessoas não racializadas e pessoas racializadas.

Como ficou evidenciado no Relatório sobre esta matéria aprovado por unanimidade na legislatura passada, o racismo estrutural e institucional está na educação, no acesso ao emprego, está na saúde, está nos serviços públicos, está na habitação e está na justiça.

Quando tentamos resolver os problemas dos guetos criados para pessoas negras e ciganas, longe da cidade e das possibilidades da cidade, estamos, precisamente, a tentar combater o racismo estrutural que, de resto, com os números disponíveis, demonstram a discriminação e a falta de oportunidades.

Portugal tem, assim, os mesmos problemas que outros países pós-coloniais e não consta que a liberdade de expressão dos cidadãos esteja sufocada.

Como se explica no Parecer do Conselho Superior de Magistratura, “ Não raras vezes os direitos fundamentais (v. g., direito ao bom nome e reputação, liberdade de expressão) conflituam entre si, impondo-se a estrita limitação de um para a necessária, adequada e proporcional tutela do outro, o que nos leva a concluir pelo carácter não absoluto dos direitos fundamentais. Ou seja, conforme orientação unânime, nenhum dos direitos fundamentais tem natureza absoluta ou ilimitada, sendo de reconhecer restrições a esses direitos, sobretudo para a salvaguarda de outros direitos merecedores de proteção constitucional.

Vale dizer que o direito de liberdade de expressão, inserido no quadro dos direitos, liberdades e garantias pessoais com dignidade constitucional (artigo 37.º), não se afirma como um direito absoluto, pois a lei ordinária restringe-o nos casos expressamente previstos na Constituição, limitando-o ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses também eles constitucionalmente assegurados, como sejam o direito à honra, ao bom nome, à reputação e à imagem (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

Existem, pois, limites ao exercício da liberdade de expressão que se prendem com essa necessidade de salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos, conduzindo a sua violação à punição criminal, como sucede no caso da situação prevista no n.º 2, al. b), do artigo 240.º do Código Penal, que pune quem “Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”.

Neste caso, a conduta assume carácter antijurídico, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento, uma vez que, sendo difamatória ou injuriosa, ultrapassa o limite do socialmente tolerável e deixa de estar inscrita entre o que a liberdade de expressão autoriza.

Estas foram algumas das muitas considerações que fiz.

Quanto à proposta de eliminar o quadro contraordenacional vigente e a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, para além do objetivo político evidente de desproteger as pessoas racializadas e de fortalecer o discurso negacionista em relação ao racismo, ela é juridicamente absurda, na medida me que pressupõe que o Direito Penal não é a último ratio da intervenção do Estado, mas a primeira.

Em segundo lugar, tal como se refere no Parecer do CSM, tal proposta ignora um conjunto significativo de compromissos internacionais assumidos em matéria de combate à discriminação racial.

O Deputado André Ventura disse aguardar pelo dia em que eu diga que há racismo estrutural em Portugal no Plenário.

Naturalmente, expliquei que já o tinha feito várias vezes.

Estou certa de que um Deputado amante da liberdade de expressão ao ponto de mandar calar Ricardo Quaresma, pronto para dar cabo da proteção penal das minorias, ansioso para encerrar a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial não é racista.

De resto, o preâmbulo do diploma que a imprensa ignorou mostra bem como Ventura ama a luta antirracista.

Ventura não é racista, não. Tem assim umas ideias, vá.

NewsItem [
pubDate=2020-06-04 22:23:46.0
, url=https://expresso.pt/opiniao/2020-06-04-Andre-Ventura-nao-e-racista
, host=expresso.pt
, wordCount=1088
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_06_04_535132121_andre-ventura-nao-e-racista
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]