www.publico.ptpublico@publico.pt - 28 mai. 10:27

Dia 52: há mães que têm filhos preferidos?

Dia 52: há mães que têm filhos preferidos?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

Querida Ana,

Tenho uma boa notícia: concluí, sem qualquer sombra de dúvida, que gosto dos meus três filhos com a exacta mesma intensidade. Não, não me digas que é óbvio, porque passei muitos Dias do Avesso a discutir esta questão com o Eduardo Sá e ele dizia sempre qualquer coisa como “muitos pais têm filhos preferidos”. A pulga ficou-me atrás da orelha, e como, de facto, há momentos em que estou mais próxima de um do que de outro, sobretudo nas vossas diferentes adolescências, às vezes interrogava-me se era possível que o amor igual de uma mãe por todos os filhos fosse um mito. E se calhar é e se calhar há mães que têm mesmo filhos favoritos por um incontável número de razões que não nos cabe julgar, mas eu concluí que não é o meu caso.

É agora o momento em que me perguntas como é que fiz esta prova dos nove, como é que cheguei a um resultado tão incontestável. É o mínimo que podes fazer, depois de uma declaração de amor como esta.

Ora bem, vou presumir que perguntaste, e aqui vai a explicação. No outro dia dei por mim a pensar qualquer coisa como: “E se um dia um dos meus netos descobre que gosto menos dele do que de um irmão ou de um primo? E se fica magoado com isso?” A ideia provocou-me desconforto, alguma aflição, mas aceitei a possibilidade como verdadeira. Provável mesmo. Foi nesse preciso momento — estava eu a enfiar a loiça na máquina — que tomei consciência de que nunca, mas nunca, tinha feito a mim mesma a mesma pergunta em relação aos meus filhos. Nunca tive a angústia de pensar que tinha de alguma forma esconder, nem que fosse de mim mesma, uma diferença de amor, de um amor incondicional. Espera, a expressão “amor incondicional” também tem muito que se lhe diga, mas fica para a próxima carta.

Querida Mãe,

Julga que me está a dar uma boa notícia, mas obviamente não está! Eu gostava de imaginar que era eu a sua preferida!

Por acaso, sobre este assunto não tenho mesmo dúvidas. Nunca senti que houvesse um irmão preferido e também nunca senti ter um filho preferido. Dito isto, sim, há momentos em que tudo parece tão mais fácil com um deles, em que a cumplicidade e a intimidade fluem de forma tão boa que é impossível não sentir mais prazer na companhia daquele. Uma vez, num episódio do This Is Us, vi uma cena que me marcou imenso: a mãe estava numa sessão de terapia familiar com os filhos e um deles acusava-a de sempre ter preferido o irmão, de fazer todos os programas com ele, de se rir mais com ele, etc. E ela, cheia de culpa, de desespero e de intensidade, diz-lhe algo como: “Nunca gostei por um momento mais dele do que de ti, mas... ele era tão mais fácil.” Tudo o que ela lhe propunha ele fazia, gostavam das mesmas coisas, deixava-se abraçar, enquanto o outro sempre tinha sido muito mais complicado, com birras mais agressivas, sempre revoltado e a afastá-la... É tão verdadeiro isto e ao mesmo tempo tão triste, porque ele precisava tanto da mãe, ou mais do que o irmão, só que a forma como comunicava essa necessidade e esse sofrimento criava nela muito menos empatia.

Parece-me que isto tudo é muito real quando, por exemplo, nasce um segundo ou um terceiro filho. A primeira gravidez, a primeira experiência de ser mãe, é muitas vezes difícil, a mãe está mais ansiosa, com mais medo de errar, sem saber muito bem como lidar com o bebé, enquanto as seguintes são tão mais fáceis, que não admira que muitas vezes a criança em si também seja mais aberta e mais descomplicada, e a relação corra melhor. Ainda por cima, quando o segundo nasce, muitas vezes o primeiro está com dois ou três anos, na idade das birras e dos choques de personalidade, agravados pelos ciúmes com a chegada de um irmão/ã, sendo perfeitamente natural a tentação da mãe em se refugiar no recém-nascido, sereno e feliz, às vezes como uma segunda oportunidade de “fazer tudo bem”. Depois, como acontece invariavelmente na cabeça das mães, surge a culpa, que só atrapalha.

Felizmente, à medida que o segundo cresce e se começa a rebelar à sua maneira, e começa também a “irritar” a mãe, devagarinho tudo se equilibra, pendendo umas vezes para um, outras vezes para o outro. Aceitar que é assim, com naturalidade e sem medo, não pondo em causa a emoção primordial e incondicional, faz com que tudo volte ao sítio mais depressa, deixando menos marcas e menos culpas.

Fico à espera da carta sobre o amor incondicional, mas aviso já que não estou de forma nenhuma preparada para que me diga que afinal não existe.

Beijinhos

No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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