expresso.ptAlexandre Abreu - 28 mai. 11:16

O teletrabalho é uma arena

O teletrabalho é uma arena

Opinião de Alexandre Abreu

Na década de 1970, o economista político norte-americano Harry Braverman estudou e escreveu longamente acerca do processo de trabalho como arena fundamental para as disputas entre trabalhadores e patrões ou gestores. Parte do argumento central na sua obra mais importante, Trabalho e Capital Monopolista: a Degradação do Trabalho no Século XX, é que os esforços sistemáticos para maximizar os lucros implicam a modificação dos processos de trabalho no sentido de aumentar o controlo sobre os trabalhadores, reduzir a sua autonomia e desqualificar as tarefas realizadas.

Estas iniciativas dos gestores e patrões encontram resistência por parte dos trabalhadores: a disputa pelo controlo do processo de trabalho é uma das facetas da disputa pela apropriação do produto social. A expressão máxima de tudo isto é obviamente o Taylorismo, com a sua extrema partição do processo produtivo e o seu controlo minucioso sobre os movimentos dos trabalhadores, mas Braverman considerava que se tratava de uma tendência geral e que mesmo as abordagens de gestão mais humanistas (ou paternalistas, conforme a perspetiva), como a escola das relações humanas, complementam e não substituem o Taylorismo no que toca ao controlo do processo de trabalho.

Este debate tem sido retomado mais recentemente nalguns círculos a propósito da questão da automação e da “ascensão dos robots”. Embora esta última seja mais frequentemente problematizada do ponto de vista da substituição dos trabalhadores e do impacto sobre a quantidade do emprego, a verdade é que, pelo menos para já, são escassos e pouco convincentes os indícios de que a automação conduza a essa consequência de forma generalizada. Em contrapartida, parece bastante mais certo o impacto da tecnologia ao nível da redução da autonomia dos trabalhadores e do controlo acrescido sobre o processo de trabalho. Mais do que sobre a quantidade do emprego, será de recear o impacto da tecnologia, quando implementada estritamente de acordo com os interesses dos patrões e gestores, sobre a qualidade do processo de trabalho.

Vem tudo isto a propósito do debate sobre o teletrabalho, tornado especialmente atual em virtude do contexto pandémico e que conta com tantos entusiastas como detratores, precisamente por causa do seu potencial ambíguo. Vieira da Silva, em entrevista ao Jornal de Negócios, e Paulo Pedroso, numa publicação no Facebook, resumem bem a questão. Por um lado, o teletrabalho pode aumentar a autonomia dos trabalhadores, dispensá-los das horas gastas em deslocações de casa para o trabalho e das despesas associadas e permitir uma melhor, porque mais flexível, conciliação entre trabalho e vida familiar. Por outro lado, o teletrabalho pode conduzir ao aumento do tempo de trabalho, a invasões da privacidade, à perda do direito a desligar, à externalização de despesas das empresas para os trabalhadores, a uma maior dificuldade de fiscalização do cumprimento das condições de trabalho por parte das autoridades e aos efeitos nocivos resultantes da redução das interações sociais, incluindo para a consciência dos indivíduos enquanto membros de uma classe profissional e social.

Na medida em que o teletrabalho não é outra coisa senão uma modalidade do processo de trabalho, não é surpreendente que tenha este potencial ambíguo, conforme seja mobilizado de forma emancipatória ou no sentido da intensificação do controlo e redução da autonomia. A concretização do potencial num ou noutro sentido depende da forma como seja implementado e regulado no concreto, sendo que essa concretização e regulação vai ocorrer de forma acelerada pelo contexto atual. Do ponto de vista dos trabalhadores, a capacidade de garantir que o potencial emancipatório e promotor da qualidade de vida não é dominado pelas tendências contrárias dependerá muito da negociação das condições concretas ocorrer de forma individual e atomizada ou coletiva e organizada. Por sua vez, isto vem reforçar a centralidade da contratação e negociação coletivas, bem como a importância dos sindicatos e do legislador chegarem de forma atempada e preparada a este debate.

Como contributo para essa preparação, valerá a pena recordar algumas das reivindicações identificadas pelo ativista inglês Chris Harman num pequeno texto escrito em 1979 relativamente à introdução de novas tecnologias: que o tempo poupado reduza e não acrescente ao tempo de trabalho total; que não haja lugar à redução de postos de trabalho em consequência da alteração do processo de trabalho; que os trabalhadores sem condições para adotar a nova modalidade não sejam prejudicados; a não utilização da tecnologia para forçar a intensificação do trabalho; o pleno respeito pelos princípios de segurança, saúde e higiene no trabalho e pela preservação da saúde mental; e a participação do conjunto dos trabalhadores nas discussões sobre as mudanças no processo de trabalho. Com as devidas adaptações, não é um mau ponto de partida para a negociação das condições de generalização do teletrabalho.

O teletrabalho não é inevitavelmente bom ou mau, universalmente emancipatório ou invasivo. É, isso sim, mais uma arena da disputa sobre o processo de trabalho e tenderá para um ou outro destes lados conforme os interesses que sirva e a força que esses interesses tenham para se fazerem impor.

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