ionline.sapo.ptCarlos Zorrinho - 28 mai. 10:38

Política dos afetos

Política dos afetos

Os alunos não vão à escola apenas para adquirirem conteúdos formativos nos domínios do conhecimento.

Pelo título, muitos leitores pensarão que esta crónica é sobre eleições presidenciais, mas não é. As eleições presidenciais estão a germinar e já surgiram vários pré-anúncios de candidatura, o que é um bom sinal de vitalidade democrática. Se as eleições fossem amanhã, não teria dúvidas em quem votar. Mas ainda faltam muitos meses e é saudável deixar a democracia respirar.

Sou político por mandato e professor universitário de profissão, catedrático do departamento de Gestão da Universidade de Évora. Grande parte da minha vida tem sido dedicada ao ensino e à investigação nos domínios da gestão da informação e dos seus impactos. Os meus conhecimentos pedagógicos nasceram sobretudo da aprendizagem empírica e é a eles que vou recorrer neste texto, para refletir sobre as opções de política educativa no contexto da pandemia.

Com as limitações e os constrangimentos que conhecemos, os processos educativos em Portugal foram forçados a uma migração brusca para o mundo virtual. Essa migração levantou o véu sobre muitas desigualdades que estavam cobertas pelo normal funcionamento dos sistemas de ensino mas, ao mesmo tempo, espoletou dinâmicas muito positivas de adaptação e apoio solidário que minimizaram os danos e demonstraram a importância fundamental das redes, das plataformas, dos conteúdos e das competências digitais na educação moderna. Os decisores políticos e sociais e os atores educativos estão de parabéns.

O meu receio é que o entusiasmo com a capacidade de adaptar crie uma nuvem sobre o essencial. As plataformas tecnológicas são fundamentais na educação moderna, mas são instrumentais nas plataformas educativas centradas na comunidade e na escola presencial. Os alunos não vão à escola apenas para adquirirem conteúdos formativos nos vários domínios do conhecimento, mas também para desenvolverem ferramentas determinantes para a sua vida em sociedade que nenhuma rede, computador ou conteúdo digital pode transmitir.

O mundo online será cada vez mais importante nas nossas sociedades, mas não se pode sobrepor, como consequência deste interregno de confinamento, ao mundo dos afetos, dos contactos, das experiências, das vivências e das dinâmicas de grupo que só presencialmente se fruem e que contribuem para a formação da personalidade de cada ser humano.

Um mundo com suporte das ferramentas online pode ser mais sustentável, libertar mais tempo livre, melhorar a qualidade de vida das comunidades, das famílias e das pessoas em geral, mas em si mesmo e sem contenção é um pesadelo.

Se as compras online matarem as lojas de bairro, se os conteúdos online matarem os cinemas, os teatros e os festivais, se os julgamentos online matarem a proximidade da justiça, ou as consultas online a proximidade da saúde, se a segurança online matar a nossa privacidade e se a escola online matar a pertença a uma comunidade educativa, seremos nós enquanto pessoas que nos veremos cada vez mais robotizados, normalizados, higienizados e reduzidos a números, dados e registos.

Se queremos que o mundo virtual seja um complemento do mundo real, então é para esse mundo real, e não para o mundo virtual, que temos de formar as novas gerações. A política educativa tem de ser também uma política dos afetos. Esquecer isso agora será pagar uma fatura brutal mais tarde.

Eurodeputado

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