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Pax Cínica

Pax Cínica

O problema reside no hábito da maioria dos decisores políticos, jornalistas e académicos observarem o processo de globalização através de um prisma que tem 10 a 15 anos. - Opinião , Sábado.

Em tempos de turbulência, incerteza, novidade e ambiguidade (TUNA) será sempre útil questionarmos a realidade que nos entra pela casa dentro. Depois de a desgraça acontecer, surgem os profetas da desgraça, que descobrem que o "admirável mundo novo" nunca será o mesmo, lançando o anátema sobre a racionalidade e inventividade dos seres humanos.

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O problema reside no hábito da maioria dos decisores políticos, jornalistas e académicos observarem o processo de globalização através de um prisma que tem 10 a 15 anos. São incapazes de absorverem nas suas análises a deslocação progressiva da atividade económica e política na direção da China. O Atlântico norte ainda é observado como o centro da economia global, sendo o resto do mundo periferia.

Nesta visão simplificada tudo começa no Ocidente (EUA e Europa), os fluxos de comércio, investimento, capital, turismo, etc. Contudo, atualmente, é o Ocidente que se encontra numa posição passiva, recetora e reativa, cabendo apurar como a China irá retirar proveito deste momento de liderança global. Pelo que, os agoiros da chegada de um novo mundo teriam sido mais úteis há alguns anos atrás.

Esta pandemia apenas revelou que o centro de gravidade da economia mundial já está situado na região do indo-pacifico, mais precisamente na China. A transição foi efetuada nas últimas décadas e teve a sua primeira vaga com a emergência económica do Japão e dos Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong). Mais recentemente, a economia da India veio dar energia a esta configuração, quando se transformou numa das forças propulsoras do crescimento global.

A rápida urbanização e industrialização da China fez nascer uma classe média que passou a ser o sustentáculo do país. A China transitou de uma economia pequena e aberta, para aquilo que é hoje, uma economia continental, fechada e protecionista. Esta autossuficiência e autarcia é essencial para a projeção do poder imperial, como se observou no caso norte-americano durante o século XX.

Lojas chinesas e choques sistémicos

A China não só se transformou no principal produtor-exportador como no principal consumidor-importador mundial. À medida que a classe média chinesa foi crescendo, também a procura de bens como automóveis, eletrónica, alimentação e serviços como o turismo, tem crescido à escala global. A China tal, como os EUA, passou a ser geradora de choques globais e, em simultâneo, a desenvolver uma capacidade de resiliência aos choques.

Ao contrário do que as rotas da seda possam pressupor, o comércio internacional já não desempenha um papel fulcral na economia chinesa. De acordo com dados mais recentes publicados pelo Banco Mundial e FMI, as exportações chinesas representaram em 2018 apenas 20% do PIB do país, baixando do pico dos 36% atingido em 2006 – enquanto em 2018 as exportações representavam para os EUA 12% do PIB; para a França e o Reino Unido 30%; para a Coreia do Sul 43% e para a Alemanha 47%. Acrescido de que, as importações chinesas se situavam em 2018 nos 19% do PIB, tendo caído dos 29% de 2006, ficando apenas a quatro pontos percentuais acima dos 15% dos EUA.

Assim, a orientação da economia chinesa é cada vez mais interna, enquanto desempenha um papel central no contexto mundial, dada a dimensão do seu mercado e a sua velocidade de crescimento. Entre 2013 e 2018, a China representou quase 35% do comércio mundial e o seu contributo global foi superior à soma das duas economias seguintes, EUA e India, já que ambos contribuíram, respetivamente, com 12%.

Os números são lapidares. Dos 4% registados em 2002, a participação chinesa, na economia global, quadruplicou para 16% em 2018. O turismo chinês aumentou 11% ao ano, crescendo 70% entre 2012 e 2017. Em 2018, 30% dos novos veículos foram vendidos na China, enquanto no ano 2000, tinham sido 10%.

A China transformou-se num mercado essencial para muitos países. O mercado chinês é vital para os exportadores de matérias-primas, produtos de luxo ou de bens industriais e serviços turísticos. Hoje, esse mercado é fonte de prosperidade para países como Arábia Saudita (petróleo), Brasil (produtos agrícolas), Austrália (gás), Taiwan (semicondutores) e Alemanha (bens de capital), entre muitos outros.

Portanto, estamos na presença de um ator verdadeiramente global que deixou de depender do resto do mundo para o seu crescimento económico. Nesta senda, os efeitos económicos desta pandemia, com origem na China, vão transmitir-se ao resto do mundo. A China, porque sairá da crise mais cedo do que os restantes países, encontra-se em vantagem, podendo aproveitar a oportunidade para conquistar e dominar os mercados internacionais, dada a ausência de competição e o estado de necessidade e debilidade em que todos os países ainda se encontram. Na mesma lógica, os choques e consequentes contágios da China serão muito diferentes do que seriam há 20 anos atrás.

Nova cartografia                  

O centro do mundo já não são os EUA, mas sim os EUA e a China. O resto é periferia. Os choques transmitem-se do centro para as periferias. As decisões tomadas em Pequim para combater o coronavírus vão ter um impacto global. O tamanho do mercado interno chinês fará o resto para desequilibrar a balança de poderes ao longo deste século. Com a agravante de que a transformação económica da China não conduziu à sua metamorfose política na direção das democracias liberais, nem ao colapso da sua trama sociocultural, como muitos profetizavam ou desejavam.

O domínio geoeconómico dos EUA, nos últimos 150, anos foi assente no seu posicionamento estratégico como continente–ilha e na dimensão do seu mercado interno. O tamanho do seu mercado possibilitou aos EUA dominarem a produção de bens e serviços à escala global. Foi esse mercado que permitiu formular políticas públicas de protecionismo seletivo, investimento controlado, contratação pública especial e capacidade para estabelecer e impor cláusulas e standards internacionais. Mas, atualmente, os EUA têm um rival à altura.

A guerra comercial que Washington declarou a Pequim não logrou infligir grandes danos à economia chinesa, sem que existissem danos colaterais um pouco por todo o globo. Duas das principais economias exportadoras mundiais, a Alemanha e Coreia do Sul, achavam-se atingidas no fogo cruzado. As imposições tarifárias de Washington abriam alas a uma recessão económica mundial.

A guerra comercial foi a estratégia que Washington se valeu para abrandar e refrear os ímpetos chineses. Contudo, a maioria dos governos mundiais têm-se deparado sem alternativas e impotentes face ao avanço da China.

Muitos analistas no campo ocidental sustentam, por razões de segurança nacional, a reversão do papel da China na economia global e, consequentemente, na ordem mundial. Propõem estabelecer uma estratégia de containment, semelhante à adotada durante a Guerra Fria, para limitar a influência e o potencial de disrupção da China tecno-autoritária no sistema internacional.

Todavia, tal ensejo não parece atingível na era da globalização. Como poder-se-ia separar, ainda que parcialmente, a economia global da economia chinesa, criando dois polos de desenvolvimento mundiais, assentes em dois sistemas económicos autónomos: China e EUA? Para além de que deixaria grande parte dos aliados do ocidente, asiáticos ou de outras regiões do globo, à merce do regime neototalitário chinês.

Península asiática

A Europa é muito mais antiga do que as suas nações. Hoje vive-se um renovado período de tomada de consciência do papel da Europa no mundo. A situação europeia face aos impactos da crise sanitária é particularmente gravosa.

Com o transatlantismo esmorecendo a cada dia que passa, sem a relação atlântica, a Europa fica reduzida aquilo que é na realidade "um cabo ou apêndice da Ásia" (Paul Valéry). Como é a que Europa pode manter e garantir o seu modo de vida, o modelo social europeu, sem ser constrangida ou coagida pela massa euroasiática (primeiro a Rússia e agora a China)?

O escalar da competição comercial entre EUA-China já vinha produzindo impactos negativos e gerando preocupa��ões fundadas em algumas capitais europeias, especialmente em Berlim. A ausência de reciprocidade económica e política por parte de Pequim incomoda muitos líderes ocidentais, incluindo europeus, que não sabem como reagir, em virtude dos laços de submissão económica, sentidos como irrevogáveis.

A Europa está numa encruzilhada. O que a Alemanha decidir em relação ao seu futuro relacionamento com a China poderá ditar o futuro do espaço europeu nas próximas décadas. Seria importante considerarmos esta hipótese e percebermos que se pretendemos manter a ideia de Europa, esta irá necessitar mais do que uma mera e conjuntural união das nações. Terá que criar, tal como o fizeram EUA e China, a sua força interior para assumir o seu papel no mundo.

Por ora, prevê-se, que um novo plano Marshall seja lançado, desta vez, por Pequim. Provavelmente terá o nome da major-general chinesa "virologista, militar e mãe", que já descobriu a vacina salvadora da humanidade. Nós só teremos de agradecer: xiexie xiexie xiexie…

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