ionline.sapo.ptAntónio Galamba - 30 mar. 10:11

No país dos chicos-espertos, fiquem em casa!

No país dos chicos-espertos, fiquem em casa!

O drama, que alguns ainda não apreenderam, é que estão em causa vidas. As nossas, as deles ou as dos nossos entes queridos.

Passamos o tempo a criticar a estupidez de Trump, a boçalidade de Bolsonaro, o exotismo de Johnson e a ineficiência da União Europeia, e depois multiplicam-se sucessivos exercícios de burrice em tempo de pandemia.

A verdade é que onde há margem de manobra ou de liberdade emerge um sucedâneo do improviso nacional, a chico-espertice, sob as mais diferentes expressões e nas diversas latitudes da sociedade, em situação normal ou num quadro de gravíssima emergência de saúde pública.

O problema é que se a estratégia é de achatar a curva do surto pandémico, para ter impactos menos graves, durante mais tempo, para que a resposta não colapse, não será com este nível de insensatez e indisciplina individual e comunitária que lá vamos.

As medidas podem ter sido tardias, os comportamentos demoram a ajustar-se e as vivências comunitárias estão enraizadas, mas se não aproveitamos esta fase para proceder às alterações que se impõem, será muito difícil fazê-lo no pico do surto, no auge do stresse e do teste maior à resposta.

Este não é um tempo para desculpas ou meias-palavras. Não pode haver condescendência agora, não pode haver desculpas agora, como este presente não poderá ser desculpa para o futuro, mesmo que a narrativa seja a de que “estava tudo bem até à covid-19”. Não, não estava tudo bem. Não está tudo bem, mas pode-se trabalhar para que esteja melhor.

Mesmo sem o pico da tormenta, não indo para a Ponte 25 de Abril ou para um paredão qualquer com multidões, é fácil perceber que muita coisa não será como antes. Nos comportamentos individuais, nas vivências comunitárias, nos equilíbrios nacionais e internacionais, no discurso político, na economia e nas dinâmicas mundiais, ficou claro que não é possível continuar a pensar no umbigo quando os problemas e as oportunidades são globais.

Achávamos que estava tudo bem até surgirem os incêndios de 2017, morrerem mais de cem pessoas e descobrirmos como comunidade que havia um interior do país que estava abandonado, destratado e sem o nível de atenção que garante mínimos de resiliência perante os riscos.

Achava-se que estava tudo bem depois de uma resposta governativa apresentada como a solução para as maleitas do Estado e da sociedade, quando descobrimos que deveriam ter feito mais nos pilares essenciais de resposta às populações e aos territórios.

Ao invés do que é vox populi, o exercício de responsabilidades políticas públicas, quando levadas a sério, em tempo normal como de emergência, não são a ligeireza que uma publicação numa rede social ou um comentário anónimo numa notícia de jornal podem deixar transparecer.

Sem rotinas de trabalho conjunto, devidamente interiorizadas e estruturadas, não é fácil fazer convergir vontades para a concretização de respostas para as pessoas, tanto mais que o país tem modelos de organização estantes que não estão sintonizados com as dinâmicas das pessoas, das empresas e dos territórios.

O surto é global, assumiu escala pandémica, mas não há resposta nesse patamar, nem mesmo dentro dos grandes blocos. É ver os ignóbeis exercícios no plano europeu, numa deriva cada vez mais irrecuperável de insensibilidade, incompetência e incapacidade do atual projeto europeu de demonstrar utilidade para responder aos povos, além dos espasmos tecnocráticos dum autómato político de norte qualquer. Não aprenderam com 2008, nem com o Brexit.

É que mesmo no plano nacional, para além de faltar coordenação no terreno (não erradicassem os governos civis do mapa!) deparamos com exercícios lamentáveis de desfasamento com a realidade e com a gravidade da situação.

Estão em causa vidas humanas, mas a senhora provedora da Justiça acha que quem tem responsabilidades de administração de um território não pode salvaguardar os seus munícipes da falta de senso de quem, proveniente de zonas de risco maior, resolve regressar à terra neste contexto. Se é para reduzir o risco de contágio e ficar em casa, começa logo por quem é suscetível de transportar um acrescento de risco. Mas não resolveu dar uma prova de vida, em linha com a posição sobre a auscultação das populações sobre decisões relacionadas com o estacionamento.

Está em causa fazer tudo para conter a covid-19, mas as autoridades locais de saúde validam a desinfeção das ruas pelas autarquias e a Direção-Geral da Saúde diz que é inócua.

Não, não está tudo bem, nem podia. Não, não vai ficar nada bem, nem é expetável pela grandeza do desafio de saúde pública, pelas inconsistências da resposta e pela irresponsabilidade individual de alguns. Mas tivemos e temos um espírito comunitário que vai sobrepor-se às fraquezas e à dureza da prova, com baixas, com falhas, mas com um sentido de superação e de futuro.

Este é o tempo da resposta, de compor o que ainda for possível, de preparação para o embate maior, de cada um fazer o mínimo que importa. Afinal, de fazer como até o caracol faz. Até esse bicho insolente põe os corninhos ao sol, mas não hesita em recolher à casca quando há risco. É o caso.

Isto está para durar e nós temos de estar cá para resistir. Sem chico-espertices, ficando em casa e com um enorme sentido de gratidão para com as mulheres e os homens que estão na primeira linha do risco e do combate à pandemia. Obrigado!

NOTAS FINAIS

A ocasião. Costuma fazer muitas coisas, mas há oportunidades emergentes que se tornam pornográficas nos preços praticados perante a insuficiência da capacidade do Estado, como acontece com os testes de despistagem da covid-19 – faturar à grande à conta do estado de necessidade que vivemos. É o mercado da ganância a funcionar.

Farinhas do mesmo saco. Além do risco de vida, os impactos sociais e económicos da pandemia não são fáceis de mitigar. O Governo apresentou algumas propostas que se traduzem em comparticipações para a manutenção do emprego, em diferimentos de obrigações ou em créditos para a sustentação da atividade. Algo que a Europa também nos quer fazer: gastem ou endividem-se que depois logo se vê como pagam.

O roto ao nu. Mario Draghi, antigo presidente do Banco Central Europeu (BCE), bem pode apelar aos bancos que “emprestem dinheiro a custo zero a empresas preparadas para salvar empregos”. Aqueles que os contribuintes portugueses ajudaram a tapar os buracos que criaram vão agora, com garantia do Estado, aos mercados financiarem-se a juros negativos para depois emprestarem a quem precisa desesperadamente com spread de 1% e 1,5%. E o Estado deixa. Pagámos, pagamos e continuaremos a pagar. Haja mínimos de senso.

Escreve à segunda-feira

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