eco.sapo.ptJoaquim Miranda Sarmento - 30 mar. 08:38

A Europa e a crise do covid-19

A Europa e a crise do covid-19

Esta crise nada tem a ver com a de 2008 ou a de 2010-2012, a resposta só pode ser europeia e os líderes europeus têm de ter em conta que a União Europeia foi construída para assegurar a paz.

Nesta semana que passou a discussão europeia não permitiu, infelizmente, uma resposta completa e integrada à crise do Covid-19. Nem no plano de saúde, nem no plano económico, sobre o qual irei abordar neste artigo.

O que é que se pede à Europa neste momento?

  • Primeiro, que compreenda que esta crise é totalmente diferente da crise financeira de 2008 ou da crise das dividas soberanas de 2010-2012.
  • Segundo, que a resposta económica a esta pandemia será de tal magnitude que nenhum país pode suportá-la sozinho. Esta é uma crise que exige resposta Europeia.
  • Terceiro, que a União Europeia antes de ser uma construção Europeia é uma construção para assegurar a paz e a segurança dos seus cidadãos e dos seus territórios.

Vamos ao primeiro aspeto. Não faz sentido comparar esta crise com a de 2008 ou com a de 2010-2012. A situação económica que vai resultar desta pandemia (recessão, perda de empregos, quebra de rendimento e défices orçamentais) não resulta de nenhuma decisão dos agentes económicos.

Ao contrário da crise das dívidas soberanas. Aí, conjugaram-se três efeitos. Primeiro, naturalmente o efeito da crise financeira de 2008. A crise teve um impacto recessivo bastante forte. Mas, e aqui está o segundo efeito, apenas implicou um resgate em países (com exceção da Irlanda) que tiveram durante muito tempo políticas orçamentais laxistas. Isto é, a crise financeira impactou sobretudo em países que nos anos anteriores tinham acumulado défices e dívidas públicas e externas, que foram disfarçando economias pouco competitivas. O terceiro efeito foi o de uma política orçamental irresponsável levada a cabo como resposta a essa crise.

Ou seja, a crise de 2008-2012 implicou que os países tinham de corrigir os seus fortes desequilíbrios macroeconómicos: défice orçamental, dívida pública e dívida externa. Daí que não houvesse alternativa a programas de ajustamento particularmente exigentes. Por outro lado, não houve mutualização da dívida, mas os países beneficiaram bastante com os empréstimos por parte dos instrumentos Europeus (primeiro o MEEF e FEEF, e depois o ESM). Para se ter uma ideia, os 50 mil milhões de euros dos instrumentos Europeus tinham na altura uma maturidade média de 15 anos com uma taxa de juro de 2%. A taxa de juro média para essa maturidade da dívida pública Portuguesa era de 4%. Ou seja, durante 15 anos Portugal recebe um “subsídio” de cerca de mil Milhões de euros/ano.

Adicionalmente, o apoio do BCE a partir de 2012 e as reformas estruturais realizadas, bem como o cumprimento do Memorando de Entendimento (MoU), permitiram a Portugal regressar aos mercados e desde 2012 fazer uma “reestruturação suave”. Hoje, a taxa de juro média da dívida Portuguesa passou de um valor próximo dos 4% para 2%. Isso permitiu desde 2015 poupar quase 2 pontos percentuais (p.p.) do PIB anualmente.

Hoje a crise é diferente. Não resultou de decisões de política económica, de investimentos públicos ruinosos ou de défices excessivos ou desequilíbrios macroeconómicos. Pelo contrário, isto é uma crise verdadeiramente ex��gena. E como crise exógena exige respostas diferentes.

O segundo ponto é que é preciso uma resposta a nível Europeu. A dimensão do problema é grande demais para respostas apenas de âmbito nacional.

Nesse sentido é difícil compreender a polémica que envolve o ministro das Finanças Holandês. É importante percebermos que a mutualização da dívida, seja ela apenas para fazer face a esta crise específica (chamemos-lhes CoronaBonds), seja ela na forma de Eurobonds, não vem de forma gratuita.

Uma mutualização da dívida, nomeadamente se feita por Eurobonds, implica um ganho para os países com maior risco (que veem o risco reduzir-se em em parte da sua dívida esse risco reduzir-se, e, por essa via, reduzir-se os seus custos de financiamento), mas se não for bem feita, implica para os países com menor risco um aumento do seu risco.

Ora, isso implica que a mutualização terá de ser feita com garantias que cada país cumpre a sua parte, quer no pagamento de juros, quer no pagamento das amortizações. O que significa que o benefício tem de vir com maior supervisão orçamental, maior disciplina nas Finanças Públicas e eventualmente algum tipo de prioridade (senioridade) no pagamento desta dívida, nomeadamente com algum tipo de consignação de receitas. Só que tem de haver um equilíbrio entre essa maior segurança dessa dívida (para ser de facto de baixo risco e com isso com taxas de juro baixas) e a restante dívida (para que esta segunda não se torne dívida com maior risco, refletindo-se nos spreads).

Depois, além da disciplina orçamental e da maior transferência de poderes para a Europa, implica resolver a brutal diferença de sistemas de Segurança Social entre Estados Membros.

No fundo, a construção da mutualização da dívida tem de ser feita com os mercados. Qualquer solução que passe exclusivamente pelo BCE está condenada no médio prazo, ou abre portas a uma monetização dos défices.

Ora, a nossa esquerda e extrema-esquerda, que sempre pediu a mutualização, nunca foi capaz de apresentar uma solução que não fosse simplesmente uma subsidiação dos países mais ricos para os países mais pobres ou que não acabasse em emissão monetária. Além de que não foi capaz de sair do jargão “a dívida não é para pagar”.

Basta pensar que até há 2 ou 3 anos, o Bloco de Esquerda e o PCP defendiam a saída de Portugal da zona Euro. Defendiam uma reestruturação com corte da dívida detida pelos investidores. Mesmo alguns setores do PS embarcaram nessa retórica, quer de apoio ao Syriza na fase de confrontação com a Europa, quer no “por as pernas dos banqueiros Alemães a tremer”. Mesmo o relatório da sustentabilidade da dívida feito pelo PS e Bloco, que moderou muito as posições, tinha soluções de difícil implementação. Mas foi prometido que o governo, nomeadamente o ministro das Finanças, Presidente do Eurogrupo, levaria essas medidas a discussão nos fóruns Europeus. Creio que se impõe a pergunta se isso chegou a ser feito, e se sim, com que resultados? Porque a nossa esquerda nunca foi capaz de olhar para a questão da mutualização da dívida de forma séria e responsável.

A mutualização da dívida vai implicar mais Federalismo e a uma política orçamental mais exigente. A mutualização da dívida não funciona se depois cada país, acima desse valor, acumular valores excessivos de défices e dívida pública.

Mas o que se pede agora é que se responda à crise, com aquilo a que se convencionou chamar Coronabonds. E nesse sentido a obrigação dos dirigentes europeus é acudir à emergência. As outras questões virão mais tarde.

O que se pede neste momento é que os países possam financiar a brutal despesa (quer na saúde, quer nos apoios às famílias e empresas), o acesso à liquidez para as empresas e a perda de receita fiscal, bem como o pacote que vai ser preciso a seguir à pandemia para recuperar a economia. E financiar isto tudo com um custo de juros baixo e sem que isso os conduza a uma crise das dívidas soberanas. E sem que isso obrigue a uma condicionalidade muito dura. O programa de compra de ativos do BCE de 750 mil milhões de euros é importante para manter as yields próximas de zero, mas não é suficiente. É nesse sentido que é preciso um mecanismo adicional a nível Europeu.

Só isso permite responder de forma efetiva a esta crise sem impor um “longo inverno” de recessão, desemprego e austeridade a países que, tendo posições económicas e orçamentais mais débeis, foram, contudo, atingidos por um fenómeno totalmente exógeno.

O terceiro ponto é que a União Europeia foi fundada para manter a paz e a segurança na Europa. Ora, a crise que agora atravessamos é um enorme desafio à segurança dos países e dos seus cidadãos, e no limite, um desafio à paz interna dos Estados.

Vai a Europa falhar naquilo que está na essência da sua construção? Vai a Europa, depois de 70 anos de ausência de guerras, epidemias e, fome, depois de 70 anos de prosperidade sem precedentes, esquecer aquilo que é mais importante?

Post-scritpum 1: É notável o esforço que a esquerda e a extrema-esquerda fazem para nos convencer que estamos perante uma crise do capitalismo e que os liberais agora clamam pelo Estado. Na semana passada procurei explicar que um liberal defende a existência do Estado, nomeadamente nas funções de soberania e nas áreas onde existam falhas de mercado. Agora, não vivemos tempos normais. Muitas empresas tiveram de encerrar temporariamente, não por sua vontade, mas por imposição (seja legal, seja das circunstâncias). Ora, num contexto destes, achar que os mercados são livres não faz sentido. E não sendo livres, é normal que tenha de ser o Estado a responder à emergência. Uma coisa é o Estado acudir a situações de crise grave. Outra é achar que em tempos normais, o Estado deve gerir grande parte da nossa vida e economia. Até porque, e pegando no exemplo Português, um Estado que não consegue cumprir uma função básica de guardar equipamento militar quer gerir grandes empresas de setores onde existe concorrência?

Post-scriptum 2: Ainda mais notável é a ideia que o Socialismo responde melhor a crises. Além de em lugar nenhum o Socialismo ter gerado riqueza e prosperidade para as populações (não confundir com a elite governativa, essa enriquece rápido, como se viu em Cuba ou na Venezuela), basta pensar em Chernobil para perceber que nunca um Estado Socialista pode ter uma boa resposta a uma situação de calamidade. Por uma razão simples, que foi o grande problema em Chernobil: a informação não flui de forma livre e rápida. Em Chernobyl (sugiro a leitura de um livro muito bom sobre o acidente na central nuclear, chamado Chernobyl – a history of a tragedy, do autor Serhii Plokhy, editado pela Pinguin books), os bombeiros do quartel da cidade não tinham qualquer treino ou equipamento para fazer face a um incêndio nuclear. Combateram o fogo como se tratasse de um fogo incêndio num qualquer edifício. Não tinham sequer noções básicas sobre radioatividade e sobre o que era uma central nuclear e os seus perigos. De tal forma que praticamente todos os bombeiros morreram passado pouco tempo por via das radiações. Houve um que, a certa altura, com tanta sede, bebeu água da central, sem perceber que era radioativa. Mas ainda mais grave foi que a informação não chegou rapidamente aos decisores, e durante semanas agiu-se em Chernobil, na Ucrânia e na URSS como se nada tivesse ocorrido. Foi um milagre o resto da central não ter explodido, o que teria contaminado mais de metade da Europa.

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