www.publico.ptpublico@publico.pt - 30 mar. 05:38

Um dos “voos” mais difíceis e complexos das nossas vidas

Um dos “voos” mais difíceis e complexos das nossas vidas

Testemunho de Gonçalo de Brito Relêgo, comandante de linha área. “Não está a ser fácil para ninguém lidar com a tempestade que estamos a enfrentar. Sabemos que se trata de um dos ‘voos’ mais difíceis e complexos das nossas vidas, mas estou convicto

A área da aviação comercial, em paralelo com a da saúde, foi das primeiras a ter que lidar de uma forma directa com o problema do vírus que actualmente assombra o mundo inteiro.

No caso da aviação comercial, o inevitável contacto no terreno com os primeiros casos de contaminação com o novo coronavírus rapidamente criaram um clima de compreensiva preocupação e agitação no seio das companhias aéreas.

No início, para todas as pessoas que trabalham dentro de um avião, foi extremamente difícil perceber a melhor forma de nos protegermos desta pandemia, e especialmente que medidas deveríamos desde logo adoptar para que no desempenho das nossas funções, dentro do avião, ou em estadias nos hotéis, conseguíssemos mitigar o elevado risco que corríamos. 

Enquanto piloto, sempre tive como procedimento pessoal desinfetar com produtos fornecidos pela empresa todos os equipamentos que iria utilizar dentro do cockpit, dando como exemplo, entre outros, o microfone que utilizamos para falar com os controladores de tráfego aéreo, hábito que hoje se tornou obrigatório.

Para os pilotos era fácil sentir uma falsa sensação de segurança, uma vez que em condições normais não estaríamos em contacto directo com passageiros, no entanto, a elevada exposição a que a restante tripulação está sujeita facilmente se tornaria num pólo de contágio dentro do cockpit.

O facto de estarmos perante um vírus cujo comportamento é absolutamente desconhecido é só por si preocupante, assim como o facto de entretanto terem surgido casos de colegas contagiados com covid-19, o que veio obviamente aumentar a preocupação de todos nós e o medo de inevitavelmente podermos transmitir às nossas famílias.

De uma forma geral, as administrações das empresas de transporte aéreo foram obrigadas a implementar medidas, na tentativa de conter a alarmante rapidez com que este vírus se propagara. Na empresa onde atualmente desempenho funções houve, com a celeridade possível, a adoção de medidas, que informam e ajudam na proteção de todos os tripulantes de bordo e de terra, no desempenho das suas funções, dentro e fora do país.

Entre outras, a aplicação de um plano de contingência que em sintonia com a Direcção-Geral de Saúde foi emanando um conjunto de procedimentos e recomendações que regularmente eram transmitidas a todos os colaboradores, estando estes mais ou menos expostos ao risco de contaminação.

Em paralelo assistimos igualmente à gradual suspensão de boa parte da operação sendo forçosa a paralisação de aviões por tempo indeterminado, paralisação essa que levou ao chão milhares de tripulantes que neste momento estão sem poder voar, apreensivos por não saberem o que poderá acontecer com as empresas onde trabalham e com as suas carreiras.

Apesar de todo este cenário, empresas, pilotos e tripulantes de cabine e demais trabalhadores do sector, encontram-se motivados para garantir que alguns voos continuem a ser realizados com o objectivo de se transportarem para junto das suas famílias passageiros espalhados por este mundo fora.

Nestes voos, apesar de naturalmente se viver um ambiente um pouco mais contido, e de se terem adotado medidas de higiene mais exigentes das que normalmente são praticadas, prevalece o espírito de missão e profissionalismo, que garante que os voos que para já se mantêm decorram dentro de um contexto de elevada segurança para tripulantes e passageiros.

Como piloto de avião, que sinto de igual forma a responsabilidade do que é ter vidas humanas na mão, quero aproveitar a oportunidade de apresentar a minha respeitosa homenagem a todos os profissionais de saúde espalhados por este mundo fora, e em particular aos nacionais, pela importância e grande capacidade de resiliência que têm apresentado perante uma tempestade sem precedentes, que nenhum radar poderia detectar.

Não está a ser fácil para ninguém lidar com a tempestade que estamos a enfrentar. Sabemos que se trata de um dos “voos” mais difíceis e complexos das nossas vidas, mas estou convicto que iremos chegar ao destino em segurança. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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