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Funerais. “É hora de enterrar os mortos e cuidar dos vivos”

Funerais. “É hora de enterrar os mortos e cuidar dos vivos”

Há histórias que começam pelo fim: a morte, em período de pandemia, exige um sacrifício que tem modificado a forma como os portugueses se despedem dos seus entes queridos.

A. morreu. Sem surpresa, nem para si, nem para os seus. A doença havia cumprido a amarga promessa feita há dois anos. Numa cama do hospital, soltou o último suspiro. Uma voz de rouca informou a família ao telefone pela manhã: a mulher, os dois filhos, as noras e os netos. Nenhum pôde estar à cabeceira para se despedir, e agora essa oportunidade não existe mais.

É uma nova realidade, omissa das manchetes, trazida pela pandemia do novo coronavírus. As famílias não se podem despedir de quem parte, seja uma vítima da covid-19 ou de outra morte qualquer. Agravando (e arrastando) a dor. E espoletando tensões.

As recomendações da Direção-Geral de Saúde (DGS) para as cerimónias fúnebres são, para já, exclusivas para falecimentos por covid-19, o que não resolve o problema. Numa pandemia, todos são suspeitos de terem contraído o vírus – tenham ou não sintomas –, o que dificulta o processo natural de preparação de um cadáver e de um funeral, que, à partida, incluiria velório e enterro na presença de um alargado número de pessoas.

Perante o silêncio das autoridades, a Associação Nacional de Empresas Lutosas (ANEL) reagiu. No dia 2 de março, quando foi conhecido o primeiro infetado em Portugal, pediu instruções à DGS. Até hoje, não obteve resposta. No dia 15, a ANEL, já sem mais poder esperar, publicou no seu site o “Guia Covid-19”, um conjunto de recomendações dirigido às agências funerárias. No dia seguinte, a primeira morte pela doença no país foi confirmada pelas autoridades.

A. era doente oncológico. Sem aparentes sinais de contágio pelo novo coronavírus. E só na fase burocrática a sua família soube que não mais veria o seu rosto em carne e osso. Ou que o seu funeral seria cumprido, passo a passo, regra a regra, de acordo com o plano de contingência anunciado pela DGS para o covid-19. Apenas e só, por opção (e responsabilidade) da agência funerária escolhida.

Carlos Almeida, presidente da ANEL, é o responsável pelo plano que, admite, “lhe tem valido muitas críticas”. É polémico, e embate, muitas vezes, na incompreensão de quem se debate com a dor e o choque de perder um ente querido. “Não é de ânimo leve que dizemos a familiares, a companheiros de vida, filhos, irmão ou pais, que não podem voltar a ver as pessoas de quem se querem despedir. Ou que não os podemos colocar em jazigos ou sepulturas de família”, tal como ficou definido em Lisboa.

A diferença está apenas na cremação. Quem não morre de covid-19 pode ser sepultado nos cemitérios, mas as agências funerárias seguem o mesmo protocolo em tudo o resto. O cadáver é colocado em dois sacos, o hospitalar, e noutro impermeável. Sem roupa. Esse saco jamais volta a ser aberto. O corpo, colocado em caixão fechado, segue diretamente para o cemitério ou crematório, sem velório, nem qualquer tipo de cerimonial. O enterro deve ser feito em sepultura comum, evitando, desta forma, jazigos ou sepulturas de família, normalmente sob uma pesada pedra tumular. O objetivo é acelerar o processo, com o mínimo de contactos possíveis. Há um limite de pessoas que podem acompanhar a cerimónia: dez. Mas não todas ao mesmo tempo. O grupo deve ser dividido em dois grupos de cinco, e as pessoas devem manter-se a uma distância mínima de dois metros. “As pessoas têm de perceber, de uma vez por todas, que temos de levar isto a sério”, alerta Carlos Almeida. “A partir do momento em que o cadáver está dentro de um saco, deixa de ser problema dos vivos. Mas nós temos obrigatoriamente de proteger os vivos, tanto os operadores, como os familiares e amigos que estariam no funeral”, afirma, citando Sebastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, na ressaca da tragédia de 1755: “É hora de enterrar os mortos e de cuidar dos vivos”.

Foi exatamente assim que A. foi a enterrar. Bastou um grupo de cinco adultos, observando à distância; distantes entre si. A. morreu sozinho, como todos os homens sempre morrem. Mas luto fica ainda por encerrar. “Podem dizer mal de mim e da associação, pois não queremos que deixem de falar mal das funerárias. Quando isso acontecer, é porque a Proteção Civil e o exército já estão a fazer o nosso trabalho e as pessoas passam a ser apenas números, a exemplo do que acontece em Itália”, sublinha Carlos Almeida.

E deixa um conselho à família de A. e de todas as pessoas que morrem por esta altura, sem aparente ligação à pandemia: “As pessoas reagem de forma diferente ao luto, mas queremos que entendam que é possível fazer as homenagens aos falecidos em segurança quando tudo isto passar. Com uma missa ou uma cerimónia solene. Terá de ser assim, pelo bem de todos”.

“Vive-se um clima de medo”

Carlos Almeida admite que nem todas as funerárias têm cumprido as regras de segurança, mas alerta que “seria extremamente errado” haver quem nesta fase se aproveitasse da situação “oferecendo mais serviços, por alegado arrojo ou coragem”. “Ou para fazer negócio”, diz.

Artur Palma, da Funerária Velhinho, na Amadora, “joga pelo seguro” e cumpre as recomendações à risca. Os seus funcionários tocam o mínimo possível nos cadáveres, seja nos hospitais ou casas particulares. “Usamos um fato de proteção especial, mas, mesmo assim, o risco é enorme”, conta Artur Palma, que ainda na semana passada transportou uma vítima mortal de covid-19, desde a sua residência. “Nós estamos na linha da frente, tal como os médicos e restante pessoal de saúde”, afirma. E admite: “Sente-se um clima de medo. O medo é mesmo muito grande nas funerárias”.

Artur Palma cumpre as recomendações da ANEL e da DGS: “Vestimos o fato, lavamos e desinfetamos as mãos. e quando o dia termina despimos o fato, tomamos banho na empresa e só então seguimos para casa, já com outra roupa”. Até ao dia seguinte, onde o processo se repete. Em Portugal, morre-se como sempre se morreu: sozinho. Mas hoje, ainda mais só. E assim será até a pandemia acabar.

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