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“Subestimei o poder deste vírus”

“Subestimei o poder deste vírus”

Testemunho de Márcia Rola, notária em Vila Nova de Gaia e residente em Ovar, onde foi decretado o estado de calamidade a 17 de Março. “Os notários continuam a assegurar a realização dos actos urgentes.”

Lembro-me de há cerca de dois meses estar sentada a almoçar numa confeitaria que fica porta com porta com o meu cartório e estar a acompanhar o Jornal da Tarde. Nesse dia, algures em meados do mês de Janeiro, as notícias davam conta da propagação da covid-19 na China. O cenário era bastante assustador, mas, talvez ingenuamente, sentia que o vírus não chegaria ao meu pequeno e pacato país. Terminei o meu almoço e regressei tranquilamente ao trabalho.

Sou notária em Vila Nova de Gaia e a minha actividade profissional, para aqueles que não estejam familiarizados com a profissão, consiste, resumidamente, em adequar a vontade negocial das partes num negócio ao nosso ordenamento jurídico. Faço escrituras, procurações, reconhecimento de assinaturas, autenticação de documentos, entre outros. Um mês se passou e em Fevereiro as notícias que chegavam de Itália não eram animadoras. O número de infectados aumentava de dia para dia, a um ritmo alucinante. Agora, era claro para mim – o vírus chegaria a Portugal. Era uma questão de dias. Apesar disso, pensava eu, as notícias estavam a provocar o alarme social e tudo me parecia um exagero. O tempo foi passando e os factos foram-me provando o contrário – que eu subestimei o poder deste vírus.

A confirmação inequívoca aconteceu na segunda semana de Março, com o fecho das escolas. Os meus filhos estão em casa desde o dia 16 de Março e o meu marido também, por determinação da sua entidade patronal.

Um notário trabalha em contacto estreito com o público. A grande maioria dos actos tem de ser feita na presença dos intervenientes. Assim o exige a fé pública que conferimos aos actos. Daí advém também a nossa importância na prevenção dos litígios. Por aqui, já se podem antever os problemas que este vírus nos tem colocado. No dia 10 de Março, tomei a decisão de começar a trabalhar à porta fechada, limitando a presença na recepção a uma pessoa de cada vez. As pessoas começaram a aguardar a sua vez no exterior do cartório. Toda a documentação para instruir escrituras e demais actos passou a ser enviada por correio electrónico e os originais a serem posteriormente validados, na presença dos intervenientes. A higienização do cartório passou a obedecer a critérios rígidos. A desinfecção de maçanetas, interruptores, balcões, canetas, teclados, cadeiras, mesas, terminal de pagamento, telefones, começou a ser feita várias vezes ao dia. Lavagem das mãos vezes sem conta, utilização de máscara nos últimos dias. Julgo que, neste momento, pelas notícias que me vão chegando, a maioria dos cartórios estará a trabalhar desta forma.

No meu caso concreto, encerrei o cartório no dia 19 de Março. Resido no concelho de Ovar, onde foi decretado o estado de calamidade no dia 17 de Março, facto que me impede de me deslocar para o meu local de trabalho. Assim vou continuar até que o estado de calamidade termine. O impacto que esta medida terá na minha vida, na vida da minha família e também das minhas colaboradoras ainda não estou em condições de avaliar. Mas os tempos que se avizinham não serão fáceis, com toda a certeza. Farei o que estiver ao meu alcance para manter os postos de trabalho e continuar a honrar a minha profissão.

De qualquer forma, os notários continuam a assegurar a realização dos actos urgentes. Esta urgência terá de ser devidamente fundamentada. Os testamentos e escrituras em caso de morte iminente são considerados actos urgentes. Mas outras situações poderão ser consideradas urgentes – uma habilitação de herdeiros para desbloquear contas bancárias é apenas um exemplo.

Sei que, neste momento, a Ordem dos Notários tem em cima da mesa diversas propostas para a desmaterialização de alguns atos, nomeadamente de contratos como o contrato de arrendamento e contrato promessa de compra e venda. A ideia é implementar a celebração destes contratos à distância. Esta medida facilitaria muito a vida das pessoas, sobretudo numa altura como a que vivemos. Os notários portugueses estão cá para isso!

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