www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 29 mar. 19:50

Reviravolta em Tancos?

Reviravolta em Tancos?

A realidade, por vezes, consegue ser mais surpreendente do que a ficção. Os factos agora denunciados permitem admitir que o que julgava ser ficção e que narrei num texto anterior estará mais próximo da realidade do que a narrativa ficcionada da acusação. - Opinião , Sábado.

Segundo notícia da Radio Renascença, de 16 de marco, um dos arguidos militares do "caso Tancos" requereu a ilegalidade de todo o processo e fundamenta exaustivamente esse pedido. Significa que, imediatamente antes de este caso ir para quarentena, um dos arguidos juntou ao processo a denúncia de numerosas ações e omissões de procuradores do Ministério Público (MP), titulares da investigação, e de inspetores da Polícia Judiciária (PJ) a quem tinha sido delegada a atividade investigatória, que poderão configurar crimes, precisamente o mesmo tipo dos que são imputados aos investigadores militares e em razão  dos quais, recorde-se, esteve o diretor-geral da Polícia Judiciária Militar preso preventivamente durante alguns meses. Felizmente, acórdão da Relação de Lisboa corrigiu a ilicitude desta prisão decidida por um juiz de instrução com base na promoção dos procuradores do MP. Curiosamente, estes serão responsáveis, se se vier a confirmar a denúncia agora apresentada, pelo cometimento de atos ou omissões mais gravosas do que os que são imputados aos investigadores militares arguidos neste processo.

A realidade, por vezes, consegue ser mais surpreendente do que a ficção. Os factos agora denunciados permitem admitir que o que julgava ser ficção e que narrei num texto anterior estará mais próximo da realidade do que a narrativa ficcionada da acusação. Esta terá fabricado uma hipotética encenação atribuída a investigadores militares da Polícia Judiciária Militar (PJM) e da Guarda nacional Republicana (GNR) na recuperação do material de guerra furtado pretendendo, com ela, encobrir a encenação de autoridades judiciárias e policiais que permitiu a ocorr��ncia do furto nos paióis nacionais de Tancos (PNT).

São precisamente os factos que tornaram possível a concretização do furto e as decisões que parecem ter visado encobrir esses atos que necessitam de ser investigados. Isto é, está na altura de serem investigados aqueles que nada fizeram para impedir que fosse colocada em risco a segurança nacional ao permitir a ocorrência de um furto de material especialmente perigoso e a possibilidade de este ser comercializado ilicitamente. Porque pretendeu o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) afastar a PJM da investigação de factos para os quais é especificamente competente? Quem permitiu a usurpação dessa competência? Porque é que foi retirado o processo investigado por este órgão de polícia criminal (OPC) apensando-o ilegalmente a outro que estava a ser investigado precisamente por aqueles que tinham tido um comportamento omissivo tornando possível o furto? Quem permitiu ou consagrou em auto informações que não correspondiam à verdade? Quem pretendia ganhar com a decapitação da PJM e o lançamento de suspeitas visando a extinção deste OPC?

Enquanto com as suas ações os investigadores militares pretenderam prioritariamente a recuperação do material pela perigosidade que representava, o que pretenderam procuradores e inspetores ao terem permitido a consumação do crime? Como puderam admitir o risco desse material ser traficado? Impedir o furto de material de guerra deveria ter sido o seu desígnio para salvaguarda da segurança e do interesse nacionais. Infelizmente, não revelaram grande preocupação com estes interesses.

E, depois do furto consumado, que tipo de investigação foi conduzida pelas autoridades judiciárias e pelos inspetores? Como foi possível que, nem com interceções telefónicas, vigilâncias e metadados dos seus suspeitos, nem com ações encobertas "preventivas" - duvidosamente fundamentadas e conseguidas à margem da investigação para evitar o juiz de instrução competente para a prática dos atos jurisdicionais -, tenham detetado os contactos realizados pelos investigadores militares com um informador que MP e PJ sabiam ser o principal suspeito do furto? Porque também, quanto à identidade conhecida dos suspeitos, essa informação foi ocultada à PJM?

A informação que tinham recebido, em abril de 2017, na denúncia registada falsamente como anónima, era bem concreta e revelava a preparação de um crime que punha em risco a segurança nacional, os suspeitos e o local do furto. Essa denúncia, ao contrário do que se pretendeu fazer crer, não foi desvalorizada, pois a sua fonte era um dos suspeitos que tinha já tido participação no plano criminoso. Quando alguém, com elevada responsabilidade no órgão que tutela a investigação, afirmou que a denúncia não tinha sido considerada relevante, o que isso significou é que também de si teria sido ocultada informação, e daí a qualidade de algumas decisões tomadas. Pelo contrário, o MP terá considerado tão relevante que a ocultou de todos: da PJM, das Forças Armadas e do juiz de instrução. Tendo-a escondido de todos, porque iria ser divulgada a um dos investigadores da PJM como mais tarde se pretendeu fazer crer? Ser "dono" do inquérito não significa fazer tudo o que se quer.

Hoje, é pertinente considerar que, sabendo que o assalto ia ocorrer, autoridades judiciárias admitiram a sua concretização pensando que conseguiriam controlar os movimentos dos autores e do material furtado e, até, provocar a sua venda a um hipotético terrorista. Com a detenção dos autores registariam uma operação "exemplar" contra o terrorismo, ainda que nenhum indício houvesse que pudesse induzir isso, e a eventual recuperação do material nessas circunstâncias teria outro impacto e maior prestígio. Porém, exemplar teria sido a prevenção do crime e era isso que se exigia a quem tem por responsabilidade a prevenção do crime. Procuradores e inspetores controlaram o plano criminoso através de um informador que, além de ter sido seu denunciante, agiu como agente infiltrado sem cobertura legal e sem controlo jurisdicional. Conseguiram o adiamento da data do furto mas não o impediram; e este foi consumado. E, nem mesmo depois de a PJM, tutelada pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, ter iniciado a investigação ao furto, o DCIAP e a PJ partilharam as muitas informações de que dispunham ocultando àquele OPC, mais uma vez, conscientemente e ilegalmente informação relevante para o processo. Mas, felizmente e por ação de investigadores militares da PJM e da GNR, esse material foi recuperado, com exceção das munições de cal. 9mm. E, por isto, o país descansou.

Só que isso não terá agradado a todos. Parece ter sido por despeito que, precisamente os mesmos procuradores do MP e inspetores da PJ que permitiram com a sua inação que o furto ocorresse, viessem a investigar os atos dos investigadores militares da PJM e da GNR - sem garantia de objetividade e nenhuma de imparcialidade -, e viessem a acusá-los de uma hipotética e ridícula encenação na recuperação do material de guerra furtado. E, em mais uma ilegalidade, o MP apensou a este processo o processo que investigava o furto e, com isso, provocou em muita gente a ideia de que investigadores militares teriam estado envolvidos no furto nos PNT.

Entenda-se que foram os responsáveis pela investigação quem fabricou esta narrativa da encenação e da existência de um hipotético pacto entre investigadores e titulares da ação política com assaltantes; e com ela atentaram contra a normalidade da ordem constitucional quando, com a ajuda involuntária de órgãos de comunicação social, de comentadores e de políticos a quem tudo serve no combate politico, envolveram órgãos de soberania, colocando em causa a sua ação politica. Não esqueçamos a tentativa de envolvimento das figuras do Presidente da República (PR) e do Primeiro-Ministro (PM) com a insinuação que a prestação de depoimento sobre a recuperação do material furtado provocaria. Mancharam-se instituições nacionais e titulares de órgãos de soberania - com concreto prejuízo na atividade governativa ao ser forçada a exoneração do ministro da defesa nacional -, apenas porque tinham recorrentemente manifestado preocupação pelo esclarecimento integral dos factos.

Após a recuperação do material de guerra, o titular da ação penal deveria ter congregado os esforços da PJ e da PJM na identificação de todos os autores do furto e na recolha de provas e indícios para a sua incriminação. Porém, a preocupação prioritária foi perseguir os investigadores que recuperaram o material furtado. Tanto assim que a detenção dos assaltantes foi posterior à detenção daqueles.

Afinal, quem e o que ganhou ou pretendia ganhar com a fabricação de tal encenação? Recordo que um juiz de instrução considerou - e disse-o na inquirição do ex-Ministro da Defesa Nacional (MDN) - que o exercício das competências do PR tinha sido condicionado para não ter reconduzido a anterior Procuradora-Geral da República (PGR). E ninguém se insurgiu contra tal afirmação a não ser o próprio inquirido. No fim, além de um ajuste de contas com "inimigos de estimação" – e basta ver as certidões retiradas para instaurar outras tantas investigações -, outras vantagens alguns retiraram ao longo deste processo.

Assim, estranha-se que tenha sido possível incriminar investigadores militares quando procuradores e inspetores terão praticado precisamente o mesmo tipo de ações ou omissões de que acusam aqueles e encenado o mesmo tipo de denúncias anónimas que imputam àqueles. Muitas ilegalidades parecem ter sido cometidas em todo este caso, desde o dia em que um elemento do grupo criminoso denunciou a preparação do assalto e dos atos já praticados até à acusação ficcionada que atenta contra o próprio Estado de direito e o respeito pelas instituições e os órgãos de soberania nacionais. Estas ilegalidades poderão e deverão ter consequências jurídicas na decisão instrutória. Também em relação a todos estes factos, e para que Justiça seja feita sem olhar a quem, se exige que sejam investigados e apuradas as responsabilidades dos seus autores.

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