www.publico.ptpublico@publico.pt - 29 mar. 19:00

Corona “versus”

Corona “versus”

Bem sei que o tempo é de combate e depois haverá tempo para pensar o futuro. Mas quando isto passar estarão os Estados e as empresas dedicados e preparados para estudar e implementar regras rígidas que minimizem o surgimento de epidemias virais futu

Nas últimas semanas temos sido “infetados” com diferentes opiniões, projeções de propagação, profecias, mensagens de esperança ou brados de desespero sobre a inexpugnada covid-19. Uns criticam a praticidade das medidas, outros debatem o futuro próximo da economia e há ainda quem defenda correntes mais metafísicas que questionam a forma como a humanidade pode aprender e reverter quando sofre surtos desta índole.

A fase que atravessamos é tão sensível de discutir que certezas tenho muito poucas. Mas colecionei algumas desde dezembro último, aquando das primeiras notícias que surgiam de Wuhan. A certeza de que desprezámos um foco infecioso que estava a dizimar populações a milhares de quilómetros de distância. Desvalorizámos o tema pois ele estava longe, era um problema da China, uma nação com hábitos bem diferentes dos nossos, os quais julgamos com alguma sobranceria distante e meia provinciana de que “aquilo, a nós, jamais acontecerá”. Está longe, lá nos chineses.

Também fiquei com a certeza de que os países democrático-eruditos olharam para o início da epidemia na China da mesma forma que o fizeram com o surto do ébola na África Ocidental que, em dois anos (2014 e 2015), dizimou cerca de 11.300 vidas em cinco países do oeste africano. “Isso é em África”, temos muita pena, mas jamais chegará aqui.

Terceira certeza. Nesta era de globalização em que vivemos, na qual adoramos viajar e receber turistas, em que experienciamos as culturas visitadas ou importamos alguns dos seus hábitos e rituais, fazemo-lo a uma velocidade feroz. E o longe, num ápice, fica perto. E bate-nos à porta. Mas ainda assim desvalorizamos. Construiu-se uma retórica de “gripe perigosa para idosos” que nasceu de “morcegos na China” e que é bem “menos letal que as nossas gripes convencionais e mais civilizadas”.

Uma verdadeira tragédia grega que desde muito cedo anunciava um ou vários finais sinistros. Sim, eu vejo romance nesta pandemia, não como enredo de agradecimento. Longe disso, não dou graças a esta cólera, como não dei à epidemia do ébola ou às secas que continuam a fazer largas vítimas de pessoas e animais na África meridional. Encaro a metáfora romântica com a humildade de aprendermos algo com o cenário de terror que enfrentamos, contrariando os dogmas das nossas certezas.

ras? Vamos incentivar ao fim dos abraços e beijinhos ou vamos impor sanções a quem mantiver mercados de animais vivos? Vamos passar a usar máscaras nos transportes públicos ou vamos passar a impedir de ir para o trabalho quem estiver com sintomas virais? Estaremos nós preparados para a nossa catarse quando tudo isto passar?

Última certeza. Se não formos rigorosos no pós-covid-19, ela voltará de uma outra forma. Mais forte e mais arrasadora. Em jeito de poesia romancista, mudam-se os tempos, mudem-se as vontades.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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