www.jornaldenegocios.ptMiguel Mendes Pereira - 29 mar. 19:15

Auxílios à aviação: não haverá almoços grátis (I)

Auxílios à aviação: não haverá almoços grátis (I)

A radiografia prévia da TAP denota alguns problemas: prejuízos acima dos € 100 milhões nos últimos dois anos e um endividamento muito significativo. O que torna problemático o recurso a quaisquer medidas implicando acréscimo de endividamento. - Opinião , Jornal de Negócios.

As frotas de aviões parqueadas em terra, tal como as gaivotas, não deixam margem para equívocos. Só que desta vez é de um cataclismo que se trata, transversal a toda a indústria da aviação.

Às companhias aéreas europeias, e em particular à TAP e aos seus acionistas (público e privados), colocam-se quatro questões principais:

- Qual a modalidade de auxílio de Estado a conceder e em que valor?

- Quais as condições que a Comissão Europeia (CE) vai exigir para aprovar os auxílios?

- Que efeitos se irão produzir em termos de concentração na indústria?

- Como se irão comportar em termos concorrenciais a British Airways e o governo britânico, com um pé dentro e outro fora da UE?

Modalidade do auxílio

As opções ao dispor do governo português passam pela nacionalização da TAP, pela injeção de capital por parte do acionista público e eventualmente dos privados, pela concessão de garantias de Estado a financiamento contraído junto da banca ou por uma combinação destes instrumentos, eventualmente conjugados com mecanismos que a própria empresa desencadeie, como seja a emissão de dívida (garantida ou não) e a sua colocação no mercado junto de investidores.

Numa economia de mercado a nacionalização é, e deve permanecer, uma medida de último recurso, até pelo peso que coloca sobre os ombros dos contribuintes.

Quanto aos outros caminhos possíveis, a radiografia prévia da TAP denota alguns problemas: prejuízos acima dos € 100 milhões nos últimos dois anos e um endividamento muito significativo. O que torna problemático o recurso a quaisquer medidas implicando acréscimo de endividamento. Conceder um financiamento a uma empresa que se encontra subitamente sem receitas representa para o credor um risco quase absoluto. Por outro lado, uma garantia concedida (pelo Estado ou por outrem) a tal financiamento representa para o garante, na prática, a assunção da dívida, o que significa que o custo dessa garantia não pode deixar de ser muito elevado.

Esta é a razão pela qual uma injeção de capital, em troca de títulos representativos desse mesmo capital, se mostra como a decisão economicamente mais racional e menos penalizadora para o contribuinte, sobretudo se - como equaciona fazer o governo britânico - a aquisição de capital visar a sua revenda mais tarde a investidores privados. O que pressupõe, naturalmente, que a companhia consiga manter-se ou tornar-se suficientemente atrativa.

No caso da TAP, qualquer mexida no seu capital implicará perturbar delicados equilíbrios que nos últimos anos foram estabelecidos entre o Estado e os privados, exceto se os privados estiverem dispostos a acompanhar o Estado de forma a manter a correlação de forças, o que, nas atuais circunstâncias, se mostra duvidoso. Pode, no entanto, ser o mote para o Estado reconfigurar a composição acionista da TAP, algo por que este Governo já por mais de uma vez demonstrou vontade.

Já o caso da SATA se mostra bastante mais problemático.

Comissão Europeia

A concessão de auxílios estatais às empresas está sujeita a regras estritas previstas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e é normalmente condicionada pela CE. Está ainda bem fresca na memória a radical cura de emagrecimento a que foram sujeitos os bancos portugueses que beneficiaram da recapitalização pública nos anos 2011-2014. Será, pois, ilusório pensar que os auxílios às companhias aéreas possam vir a ser concedidos em regime de "bar aberto".

A CE aprovou já um "quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto da COVID-19". Trata-se da concretização, em vários figurinos, dos dois fundamentos do Tratado ao abrigo do qual serão avaliados eventuais auxílios: a) a ocorrência de acontecimentos extraordinários; e b) a ocorrência de uma perturbação grave na economia de um Estado-membro. A recapitalização pública dos bancos portugueses há uns anos deu-se à luz deste último fundamento.

De uma forma ou de outra, os Estados-membros serão obrigados notificar a Bruxelas a maioria das medidas de auxílio, seja sob forma de medidas individuais, seja sob forma de programas aplicáveis a todas as empresas relevantes por igual (não esqueçamos que Portugal tem uma segunda companhia aérea com participação pública, a SATA). E nesse contexto Portugal fará bem em ter presente duas notas.

Em primeiro lugar, não restem dúvidas sobre o facto de que a maquinaria das diplomacias francesa e alemã se encontra já em pleno labor junto da CE, visando "ajustar" as exigências da DG COMP às necessidades das suas companhias de bandeira. Espanha estará atenta (mas tem que se conciliar com o Reino-Unido no seio da "holding" IAG que detém a BA-Iberia), Itália tem de gerir o drama da pandemia e atalhou expeditamente a discussão nacionalizando a moribunda Alitalia, chutando para a frente a discussão que inevitavelmente terá com a CE. Os Países-Baixos aproveitam a boleia voluntarista da França a propósito da Air France-KLM. Já Portugal enfrenta aqui o tradicional problema do seu reduzido peso político (e económico) no seio da UE, a que acresce a difícil situação financeira pré-pandemia das suas companhias aéreas.

Em segundo lugar, a CE não deixará de ter em vista o "day-after" e o relançamento da economia europeia, à luz das regras de concorrência, uma vez passada a tempestade. A CE não quererá que a pandemia sirva de pretexto para insuflar oxigénio em companhias moribundas que, não fora a crise, já estariam perto de sair do mercado. Nem possivelmente permitirá que auxílios de Estado agora concedidos venham premiar uma gestão anterior censurável a algum título, abordagem que será implacavelmente exigida pelas companhias de maior dimensão e pelos seus acionistas. Também aqui a última crise financeira e as condições então impostas aos bancos que beneficiaram de auxílios públicos servem de lição.

É certo que existem diferenças: não estão em causa, em primeira linha, os bancos, nem consequências de fatores comportamentais. Possa a CE incorporar estas diferenças na sua abordagem. Mas afigura-se improvável que a CE abandone totalmente exigências relativas à futura viabilidade das companhias e à adoção de medidas que a garantam, como sejam a reestruturação interna e o abandono de linhas de negócio (leia-se, rotas) menos rentáveis, com as inerentes consequências em termos dos correspondentes postos de trabalho.

Advogado

(Continua)

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