www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 29 mar. 19:57

Vem ai o desemprego e estar de mãos lavadas só resolve metade do problema

Vem ai o desemprego e estar de mãos lavadas só resolve metade do problema

Os factos são estes e a Padaria Portuguesa não tem de ser exemplo mas representa tudo isto porque, afinal, até podemos tomar o pequeno almoço em casa. Aproveita a falta de emprego e as baixas qualificações para uma estratégia de baixos salários, esmagando, também, as margens dos produtores que precisam de escoar produção. - Opinião , Sábado.

Num país em que metade da população em idade activa não completou o secundário, o fantasma da recessão e o medo do desemprego sentam-se juntos à mesa para jantar, lado a lado com empresas de propriedade milionária e falência assumida ao menor abalo económico, servidas por um estranho hábito em desvalorizar as profissões que, aqueles que não terminam o secundário, muitas vezes abraçam. Chama-se preconceito social e revela-se, sobretudo, nos prefixos que usamos e na designação pomposa das actividades mais simples.

Portugal é um país de doutores e engenheiros com muitos dr. que insistem no pedantismo do prefixo, desculpando-se com os bancos, como se não tivéssemos a opção de usar apenas o nosso nome. Sem entrar nos predicados que diferenciam um licenciado de um doutor, importa pensar em três coisas: a importância das actividades primárias, a desvalorização social e financeira dessas mesmas actividades e, sobretudo, no vamos fazer daqui para a frente porque, por um lado, algumas profissões vão ser vaporizadas e outras podem tornar-se inúteis. Se é certo que não ficaremos em casa para sempre, este período revela que o movimento pendular nas grandes cidades pode ser menor e que espaços de trabalho e reuniões podem (mesmo) ser virtuais. As emissões de gases diminuíram, as cidades estão mais tranquilas e respiráveis. A urgência climática repentinamente deixou de estar nas notícias mas não desapareceu. Também sabemos que esta acalmia não será duradoura. A razão do declínio das emissões (estagnação económica e morte) foge ao nosso controlo e, na recessão que virá a seguir, o financiamento vai deslocar-se da intervenção climática para a saúde pública e recuperação económica. Por outro lado, não andamos na rua mas estamos em casa, aumentando o consumo de electricidade que não se produz (apenas) de forma natural. Há, contudo, neste período tão conturbado, uma oportunidade para repensarmos formas de vida, trabalho e emprego. As entregas estão em alta e o comércio online ganha novo fôlego, os serviços que lhes estão associados, nas áreas da programação, produção e gestão de conteúdos podem vir a ser grandes oportunidades, bem como o ensino e formação para (finalmente) adaptarem-se aos novos tempos. 

O mundo mudou é uma frase que uso repetidamente, quase sempre para referir a nossa inadaptação aos desafios do mundo moderno mas, principalmente, porque quisemos integrar, só um bocadinho, a digitalização nas nossas vidas. Hoje há, certamente, muitos a pensar que aquela formação que decidiram não fazer até dava jeito, porque estamos limitados às ferramentas da telepresença. Todas as áreas foram afectadas e todas, sem excepção, estão - ou serão - atingidas pelo abrandamento do consumo que regressa, placidamente, a um modelo tradicional. Hoje não são as roupas ou sapatos, beleza e estatuto a nossa preocupação. O vírus - e o medo de sair à rua - torna-nos mais simples e iguais. Os bens de primeira necessidade estão no topo da pirâmide e as tais actividades mais simples, assumem-se fundamentais. Paradoxalmente, as tecnologias de ponta, linguagens de programação, comunicações móveis e acesso à internet passam a ser (mesmo) bens de primeira necessidade. O consumo diminuiu (excepto para o papel higiénico mas, sobre açambarcadores, não adianta falar) drasticamente, ao mesmo tempo que aumentou o número dos que têm a sua situação financeira afectada, e a probabilidade de deixarem de conseguir pagar as despesas básicas, se as restrições se mantiverem por mais de um mês. Os resultados são da sondagem ICS/ISCTE para a SIC/Expresso especial Covid-19 e ajudam a comprovar a ideia de que temos baixos níveis de instrução (quanto menor o nível de instrução maior a dificuldade financeira) que conduzem a trabalho ou emprego precário e mal pago, num esquema de riqueza mal distribuída que impede que estejamos preparamos para cenários de crise. Destapa, também, o véu da natureza predadora de um certo capitalismo selvagem, mascarado de empreendedorismo o qual, na total conivência do Estado, se esquece de distribuir. Zero ideologia e partidarismo nesta observação. Os factos são estes e a Padaria Portuguesa não tem de ser exemplo mas representa tudo isto porque, afinal, até podemos tomar o pequeno almoço em casa. Aproveita a falta de emprego e as baixas qualificações para uma estratégia de baixos salários, esmagando, também, as margens dos produtores que precisam de escoar produção.

Somos um país pequeno em tamanho (território e número de pessoas) e enorme na ambição, que sonha com um pé em mercados dinâmicos, inspirando-se e copiando modelos que, depois, não encontram clientes para a sua rentabilização, ao mesmo tempo que coloca o outro pé no fundo do poço, porque nos falta a sofisticação e a folga na carteira que garantem o mercado a girar. A verdade é esta: Portugal é um mercado cuja dimensão não lhe permite sobreviver e que se agarra constantemente a balões de oxigénio para prolongar a agonia que resulta de um problema de base: instrução e um conjunto de estigmas que conduzem à falta de oportunidades as quais, por sua vez, aumentam as diferenças, num sistema de ensino pouco adaptado às necessidades reais e que, por isso, contribui para fazer crescer o preconceito. Ninguém quer os trabalhos mais simples por que são mal pagos e quem de lá saiu vive com vergonha das suas origens, a atitude típica da burguesia enriquecida. Por outras palavras, somos muitos filhos de pescadores, agricultores, pedreiros e sopeiras que juntaram dinheiro para que os seus filhos se tornassem doutores, numa escalada social que os aproximaria daqueles para quem trabalhavam. O que ninguém se lembrou é que boa parte dessa geração preferiu ignorar as suas origens a aprender com elas, adoptando os piores truques e a bizarria daqueles para quem, afinal, nunca deixou de trabalhar. Em resumo, não vamos lavar daqui as nossas mãos porque se ninguém cultivar o que comemos, limpar o chão que pisamos ou a mesa na qual trabalhamos, de pouco adianta a escalada social que tantos se esforçaram por alcançar e o desemprego, com mais ou menos instrução e com ou sem mãos lavadas, está a chegar.

NewsItem [
pubDate=2020-03-29 20:57:40.0
, url=https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/paula-cordeiro/detalhe/vem-ai-o-desemprego-e-estar-de-maos-lavadas-so-resolve-metade-do-problema
, host=www.sabado.pt
, wordCount=986
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_03_29_134115463_vem-ai-o-desemprego-e-estar-de-maos-lavadas-so-resolve-metade-do-problema
, topics=[opinião, paula cordeiro]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]