www.publico.ptvbelanciano@publico.pt - 29 mar. 07:56

E se fossem as crianças o grupo de risco?

E se fossem as crianças o grupo de risco?

A primeira percepção é importante. Os grupos de risco são os mais velhos e os que têm doenças crónicas. Foi a informação que nos passaram. Desde então têm surgido inúm

eras teses, algumas delas complexificando essa versão inicial, com a realidade a mostrar que todos podemos contrair o vírus, embora se mantenha a mesma ideia quando se fala de mortes. Estará para se perceber se, num primeiro embate, não terá sido essa comunicação que  nos relaxou.

Imaginemos se nos tivessem dito que o principal grupo de risco eram as crianças. As regras de isolamento social não teriam sido cumpridas com mais rigor? Não haveria mais pais e famílias a exigir medidas mais radicais? A saúde pública não seria a máxima prioridade perante a economia? É um exercício especulativo, mas quase de certeza que o sentimento de protecção se afirmaria.

As crianças são preciosas. Se os mais velhos fossem apenas transmissores, mas não potenciais vítimas, seriam mantidos à distância dos nossos filhos, por temor a perdê-los. Assim, prevalecem ambiguidades. Há um século seria diferente. Parece-nos inexplicável hoje, mas se um acidente vitimizasse maioritariamente crianças, tal situação produziria menos comoção do que se fossem adultos. Na actualidade, perante um acidente em que a maioria das vítimas são idosos lamentamo-lo, mas pensamos do mal, o menos, porque entraram no ciclo final de vida. Antes os idosos eram uma perda irreparável, pela experiência, constituindo património seguro. Uma criança era a incerteza. Era como uma página em branco.

A nossa relação com a ciência, a economia e a morte foi-se alterando e hoje não é assim. Estes dias têm-nos devolvido isso mesmo. Ainda agora, em plena quarentena, os idosos são os alvos preferenciais de reparos. São os teimosos, os desleixados, os que não se isolam apesar de serem o principal grupo de risco, lê-se nas redes sociais, como se a maioria, os mais desafortunados, não estivesse com medo e se para tantos deles, o afastamento e a solidão não fossem o seu quotidiano. Pior foi aqui ao lado, em Espanha, quando ambulâncias que transportavam um grupo de despejados de um lar por estarem infectados, foram apedrejadas e alvo de actos violentos. E o que dizer de responsáveis políticos, do Brasil aos EUA passando pelo Japão, que sem qualquer pudor dizem que terão de ser sacrificados porque a economia não pode deter-se?

Não é isso que está por detrás das afirmações de Trump quando diz que “a cura é pior do que o problema”. Ou a declaração do seu conselheiro, o economista Casey Mulligan, quando proclama que encerrar a actividade económica causará mais danos do que desacelerar a propagação do vírus. Ou ainda o vice-governador do Texas ao sugerir que os idosos não se importariam de se sacrificar pela economia?

É o regresso da barbárie, com os mais vulneráveis, como sempre, no centro. E mesmo entre os idosos, claro, prevalecerão hierarquias, com os desapoderados e desprotegidos, na linha da frente. O paradoxo é que a depressão económica chegará, independentemente de tudo disso. A questão é o quão devastadora será.

Pior ainda. Ao colocarmos o foco apenas nos idosos, ou nos doentes crónicos, é como se estivéssemos a negar a gravidade da situação, inclusive em países como Portugal. Veja-se o que está a acontecer com sectores operários e industriais, que continuam a laborar, quando não parece de todo que sejam essenciais, com dezenas de trabalhadores, muitos deles envelhecidos precocemente e com problemas de saúde, deixados sem opção económica, indo trabalhar, expondo-se ao risco, numa lógica de contágio que pode ser bem mais impetuosa do que qualquer lar de 3.ª idade. É por isso que a única opção aceitável tem de ser a solidariedade radical, é preservar todos, em nome de todos.

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