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Vasco Pulido Valente. O perfil do nosso mais leal antagonista

Vasco Pulido Valente. O perfil do nosso mais leal antagonista

Ao longo de décadas na imprensa, Vasco Pulido Valente foi o intelectual que mais angustiadamente exprimiu a desolação diante de um país desprovido de um destino ou até de um sentido trágico, e fê-lo elegendo inimigos para se lhes opor radicalmente.

A morte de um duro, desses que exigem que o enterremos de pé, é das coisas mais recriminadoras para tudo o que aí vai de manso calculismo, de bonançosa pulhice, de consciências saltitantes, artificialmente adoçadas. Vasco Pulido Valente nunca foi, contudo, uma figura propriamente vital, e, no sagaz efeito da sua peroração contra a inconsciência do nosso tempo, este “velho d’aspeito venerando”, dava a sua missa negra com o mesmo vigor hipnotizante de quem ameaça desfalecer, caindo da garupa das suas fúrias. Com a voz pesada um pouco alevantando, tirou do peito pragas de toda a ordem, atirou-se do mais alto ao mais baixo (de si como dos outros), desferindo golpes contra o fraudulento gosto e esquema de um país que, despojado da sua odisseia, hoje não vai nem volta, mas se fica eternamente embarcando e desembarcando. Debilitado e vacilante, o desastre nacional tem algo de fútil. Incapaz de mais nenhum cometimento, como VPV tinha gosto em repetir, “o destino de Portugal é, como sempre foi, apodrecer ao sol”.

Um escritor cuja mordacidade concisa era imensamente apreciada e imitada, um intérprete que marcou decisivamente a historiografia portuguesa relativa ao século XIX e princípio do século XX, como colunista gozava há décadas de um prestígio sem igual, o que significava que a sua assinatura era carta-branca para proferir as sentenças mais terríficas ou absurdas, naquela característica economia formal capaz de surpreender-nos “num relâmpago incontestável”, outras estapafúrdias e infelizes, mas beneficiando da graça vociferante de um inimputável. Sendo capaz dos maiores sacrilégios, se Vasco Pulido Valente era quem há mais tempo se mantinha escrevendo na imprensa, integrando o elenco fixo da vida pública portuguesa, isso deve-se ao facto de ter seguido à risca o seu primeiro e único mandamento: mais vale ser ridículo do que vulgar; antes a obscenidade do que o lugar-comum.

E agora morreu, aos 78 anos, sendo que há muito dividia o corpo com a doença. Esse lado implacável da sua lucidez foi, de resto, uma das características que mais o notabilizaram, cortando com a tendência para o sentimentalismo e a desbragada emoção em que refocila a maioria dos nossos colunistas. O adolescente que se apressou a portar-se como um velho, soube rejuvenescer mais tarde, para na velhice ver as coisas com tal crueza que produzia um efeito entre o cómico e o apaziguador. Aos 50 anos, já havia na relação com o próprio corpo um desejo de não se solidarizar, não se deixar arrastar também. Já se distanciava dos sinais de decrepitude, elevando de um para dois o número de actores no mais doloroso dos monólogos. Para se alhear do processo tão nefasto e indigno que é morrer, serviu-se da ironia, num auto-retrato em que do corpo encara a sua mortalidade nestes termos: “Ele nasceu em 1941 e não tem vergonha nenhuma. Até aqui, aliás, não se portou mal. Houve uma época em que me inquietava. Perdi muito tempo a exibi-lo inutilmente a médicos. Hoje não me inquieta. Ele que decida o que lhe apetecer, quando lhe apetecer. Eu parto do princípio de que ele não existe. Evito incomodar-me. Dali não me virá com certeza nada de bom. Nestes casos, a melhor política é a indiferença. Uma indiferença fingida, escuso de esclarecer. Afinal, a qualquer momento, ele pode acabar comigo.”

O talento indubitável de VPV para atingir o nervo da nossa sensibilidade, tendo registado uma série de expressões e frases na linguagem corrente, não lhe advém de um mero dom natural, mas de uma leitura furiosa das tantas páginas tomadas pelas nossas crises nervosas com os seus parcos recursos a nível de génio e loucura, aprisionada em toscas convenções, tiques e obsessões narrativas que não emprestam grande fôlego a este romance. A cópia de VPV, estava toda sublinhada e anotada, riscada e rasgada, e foi dando lugar a um panfleto colérico. Mas se a sua leitura vingou, isso deve-se grandemente a um estilo capaz de fazer engolir em seco qualquer frase por mais frágil que fosse a opinião sustentada. Com aquela prosa de elegância extenuada, o grande truque de VPV foi obrigar os seus leitores a inclinar-se perante a sua concisão lapidar. Uma escrita que, mais do que aquela autoridade marmórea que atribuímos às grandes máximas, tem algo de funesto, de desesperado, tem o vigor de um grande cínico, quase um apólogo da danação. Que consumo de café, de cigarros e de dicionários para escrever cada frase com aquelas miras, aquele efeito amargo que perdura. Esta prosa é como uma lírica que escarra.

Vasco Valente Correia Guedes, o seu nome de baptismo, nasceu no seio de uma família distinta, dessas suficientemente amparadas socialmente para se darem ao luxo de algumas ousadias contra o Estado Novo, mantendo ligações perigosas com opositores do regime e, inclusivamente, com influentes dirigentes comunistas da época, como Octávio Pato e Cândida Ventura. Neto de um juiz, pelo lado do pai, e de um médico e professor catedrático, pelo lado da mãe, Vasco teve contacto desde muito cedo com figuras destacadas da intelectualidade portuguesa. Viveu uma infância e adolescência atribuladas, passando por colégios internos, depois de ter sido expulso do Liceu Camões, por mau comportamento. Acabaria por se doutorar em Oxford, e foi ali que, depois de anos de rebelião inconsequente, no convívio com os seus colegas, muitos deles mais novos, foi confrontado com o avanço que levavam a nível de cultura e preparação, dando-se conta da “extensão aterrorizante da sua ignorância”. E, trabalhando como um cão, lá acabou por vencer a sua ociosidade e produzir a tese que daria origem ao seu primeiro e talvez principal livro como historiador – O Poder e o Povo: A Revolução de 1910 (1976). Terá sido então que VPV, que na adolescência teve aspirações de vir a ser um romancista, soube pôr a tónica da sua abordagem à História num certo virtuosismo literário, pondo-se a espreitar por ângulos inusitados, buscando uma perspectiva original, isto sem descurar uma aturada pesquisa, de tal modo que, enquanto historiador, se foi tornando um ser muitíssimo escrupuloso.

Se adquiriu uma ética de trabalho e um empenho exemplares, como lhe reconhecem vários dos ex-colegas que colaboraram com ele nas redacções dos jornais por onde passou, por outro lado, esses anos em Inglaterra não parecem ter abalado tão decisivamente a sua personalidade. Henrique Raposo, em fevereiro de 2018, nas páginas da revista E, do Expresso, antecipou na forma de um ensaio-retrato de VPV, uma biografia política e intelectual que está a preparar. Sendo um texto bastante revelador sobre o biografado, consegue ser ainda mais revelador sobre o biógrafo, e traça na verdade um programa de afirmação de uma subclasse dentro da nova direita portuguesa, dando ali vazão à mágoa de tantos admiradores de Pulido Valente, e de Raposo, em particular, que, enquanto arrivista consumado, se sente atacado pela “petulância snobe” e pelo “culto da alienação aristocrática” com que o colunista (que, inadvertidamente, gerou uma multidão de descendentes), tratava aqueles a quem faltava o pedigree socialite, aqueles em que é demasiado notório o esforço e a estafa que foi para se afastarem da vulgaridade dos “indígenas” – como VPV se referia à maioria dos portugueses –, procurando corresponder ao ideal de sofisticação intelectual e a um balanço entre a forte ambição pessoal e o desprendimento aurático dos mais nobres espíritos conservadores.

Nesse ensaio/ajuste de contas, Raposo (curioso apelido, e que  bem lhe assenta) debruça-se detidamente sobre a construção da persona de VPV, alguém que se superiorizava espezinhando o que julgava inferior, e refere-se à troca dos apelidos paternos (Correia Guedes) pelos apelidos maternos (Pulido Valente). Se a desculpa da fonética não é descabida, não esconde um efeito de assobio numa frequência que, justamente, só tem efeito junto dos cães. Mas neste plano anatómico, o aspecto em que Raposo desenterra um osso maior e mais revelador é ao reconhecer que VPV escreveu o seu epitáfio, o resumo da sua persona, ao falar de Sttau Monteiro, destacando a sua influência e do seu desenfreado snobismo na revista Almanaque, e nele próprio. “A Almanaque execrava tudo o que a seguir se adorou até aos anos 80 (...) O engagement do aristocrata, do homem frio, não passava da superfície. No resto permanecia à parte, fiel às suas origens ou à sua natureza. Um vírus subversivo dentro do seu mundo.”

Ao integrar, com apenas 17 anos, a redacção da revista dirigida por José Cardoso Pires, VPV revelou o quão precoce era o seu discernimento literário, a agudez e sobriedade do seu tom cru e áspero, que se revelou o veículo ideal para exprimir uma espécie de fabulosa indigestão face a tudo o que o rodeava. E isto, como Raposo tão bem demonstra, nasce, em parte, numa reacção “contra a vulgata marxista, que era a intocável língua franca desta geração”, e, em parte, de uma herança “epistemológica” do avô materno, uma das grandes figuras da velha oposição republicana. Chocando com a atitude de engajamento bacoco com os propósitos da revolução, aquele sentido de missão dos neo-realistas que descambou tantas vezes numa ditadura mental do ponto de vista criativo, a revista Almanaque – que contou com a colaboração de, entre outros, Sebastião Rodrigues, Abel Manta, Augusto Abelaira, José Cutileiro, Alexandre O’Neill – segundo VPV “passou  a  ser  uma  espécie  de  clube, onde as pessoas iam de manhã diluir o álcool da véspera e combinar almoços e, no fim  da  tarde,  se  encontravam  como  num  café,  para  pôr  em  dia  os  boatos  e  as  conspirações  correntes.”

Foi com esta gente que tinha já o dobro da sua idade que, verdadeiramente, VPV andou na escola, com as suas desilusões, com a revolta que tantas vezes se esconde num estilo, e foi ali que se aperfeiçoou como moralista. Em grande medida, o Vasco fumador e o Vasco escritor são símiles um do outro, revelando essa necessidade de se dotar de um exosqueleto: “Não comecei a fumar para ser adulto ou ‘viril’. Comecei a fumar porque sou horrorosamente tímido e porque o cigarro é com certeza a maior defesa dos tímidos. Primeiro, porque ocupa as mãos e simula um arzinho de à-vontade. E, segundo, porque esconde e protege ou cria a ilusão de que esconde e protege. Por detrás de um cigarro, o mundo parece mais seguro. Mesmo se andam por aí a garantir que não.” Noutra das suas crónicas, frisava que “escrever (um ofício em que me eduquei) é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem escreve calcula, planeia, emenda, substitui. Os dois processos são contrários. Pior, são incompatíveis.”

O moralista em VPV é uma ficção que lhe serviu de máscara e acabou por desfigurar e moldar os traços do próprio autor. Assim, o rapaz que quis ser romancista como depois se imaginou um revolucionário, e durante um longo período esteve bastante isolado naquela linha de intelectuais que não engoliram a pílula marxista, nem estiveram dispostos a desconsiderar os abusos e a violência sistemática contra milhões de pessoas em nome de uma utopia taralhouca, este moralista é alguém que, armado de um estilo que pega a imaginação pelo cachaço e lhe encosta o focinho no osso de uma proposição tão vigorosa e carregada de experiência como um provérbio, se serve da sua erudição para levantar um quezilento temporal, tornando-se uma consciência penalizadora. Aplicando valores e princípios universais a problemas de comportamento social, o moralista, como nos diz George Steiner, ajudando a compreender este tipo de figuras que floresceram nos séculos XVII e XVIII, “aferroa as convenções mundanas à luz implícita da eternidade”.

Mais do que um estrangeirado, à medida que VPV mergulhava nos livros de História, acompanhava a realidade do seu tempo com a distinta noção de que a própria marcha do tempo lhe era adversa. Todo o seu desprezo parece o negativo de uma nostalgia diante de um sentido de cometimento e uma grandeza que se perdera, juntamente com as figuras que parecem marcadas por um destino. Invejando os destinos das grandes nações, em várias das suas crónicas defendeu que “a cultura portuguesa é derivada e imitativa”... "Não mais de uma dezena de pessoas mudou, determinou ou fixou a imagem que temos de nós; criou a nossa consciência à semelhança da sua; nos obrigou a olhar como ele olhava; a falar com as suas palavras; a pensar com a sua cabeça. Entre escritores e poetas: Eça, Camilo, Pessoa e Nobre. Pintores: Malhoa; Historiadores: Oliveira Martins.”

Tão admirado na sua um tanto limitada rotina enquanto colonista, o historiador pagou o preço daquele bem sucedido drama rezingão, e quanto mais sucesso tinha junto da sua audiência, mais VPV se sentia um exilado temporal, um ser que parecia sentir-se perseguido e encurralado, afundando-se cada vez mais. E se persistiu até o drama só fazer rir, reconhece que o faz “porque lhe falta a força necessária para capitular, para optar pelo suicídio racional”. Mata-se sujeitando-se ao pior dos vícios, vira do avesso a sua convicção moral e torna-se um profissional da desmoralização.

Steiner adianta que um verdadeiro moralista “só obliquamente moraliza, isolando em termos lacónicos, conferindo uma formulação monumental a este ou àquele gesto, ideia feita ou ritual efémero mas sintomático, em vigor na sociedade que o rodeia”. Assim, a consciência de VPV surge-nos fora de prazo, chegando sempre a um diagnóstico terminal em que a cidade em que nasceu e de que não se consegue libertar, foi tomada por habitantes absolutamente frios, um quadro humano desolador em que, como diz Bernhard, “a mediocridade é o seu pão de cada dia e o cálculo sórdido o seu traço distintivo”.

Quando o poder fica entregue a esta classe de gente e apenas a ela serve é natural que o Estado se torne o reflexo de uma forma de prodigalidade acéfala, um aparelho despesista, que produz artificialmente a sua classe média. Face a isto, só restava desempenhar o papel do antagonista, com a paixão donjuanesca de quem escolhe as vítimas do seu enlace amoroso, escolher inimigos, cultivar essas relações, evoluir dentro do repúdio, do desprezo, fazer do ódio o seu guia. Assim, VPV explica a sua convicção de que, “numa sociedade doméstica como a portuguesa, cresce o número dos nossos inimigos, tácitos ou confessos. Se eu me defini, defini-me a coleccionar inimigos. Eles mostram o que eu sou e eu sou o que eles mostram.” E noutra das suas crónicas, explorou esta mesma noção central ao papel que se atribuiu, referindo que “os inimigos são a minha essência e o meu abrigo. São a minha disciplina. A minha disciplina consiste numa única regra, grossa, básica, salvífica: não ser como eles”.

Num país tão pequeno, que não tem em si os meios de uma renovação, e que, pior que isso, tende a ignorar, humilhar e exilar os seus maiores espíritos, o ódio não pode grande coisa, e, por mais despudorado, marcial e virulento que fosse este artilheiro andante da nossa imprensa, ao contrariá-lo, apenas conseguiu entreter, e, de algum modo, celebrar esses inimigos que, na hora da sua morte, retribuíram o favor, elogiando-o como fez Marcelo, ao reconhecer que, muito embora tenha sido, ao longo da sua vida, objeto dessa impiedosa independência crítica, sempre o admirou muito.
 

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