www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 28 jan. 09:00

Chorei quando tirei esta foto

Chorei quando tirei esta foto

Weegee, um mitómano com péssimos hábitos de higiene que perseguia sem êxito strippers que os clientes desdenhavam, saiu de casa aos 13 anos, dormiu em bancos de jardim e sobre jornais estendidos nos passeios até aprender a revelar imagens aos 14 - Opinião , Sábado.
Muitas vezes, o que tomamos como verdadeiro é falso e o que juramos ser falso é verdadeiro. Olhem para Weegee e para Robert Capa. O primeiro é o pai pobre e profano da fotografia tablóide, nascido numa aldeia miserável do império austro-húngaro (hoje situada na Ucrânia), que caminhou descalço de Ellis Island até ao Lower East Side, em 1909, para crescer na Nova Iorque da Grande Depressão, num apartamento minúsculo, asfixiante, com a mãe e os dois irmãos a viverem à custa do que o pai vendia nas ruas.

O segundo é o patrono aristocrático e sagrado da fotorreportagem de guerra, originário do mesmo império, em Budapeste, mas filho de alfaiates da classe média judia, convertido em ícone do realismo moderno, amante de Ingrid Bergman, amigo de Steinbeck e de Hemingway, um senhor. Mas há enormes dúvidas de que a sua foto mais célebre, The Falling Soldier – hoje tão identificável como a Estátua da Liberdade –, na qual um suposto voluntário republicano é abatido na Guerra Civil Espanhola, seja verdadeira: foi provavelmente encenada, de resto no ��mbito das restrições que o confronto impunha aos fotógrafos que nele se alistavam como prosélitos da fé socialista.

Weegee (Ascher Fellig pela certidão de nascimento), um mitómano com péssimos hábitos de higiene que perseguia sem êxito strippers que os clientes desdenhavam, saiu de casa aos 13 anos, dormiu em bancos de jardim e sobre jornais estendidos nos passeios até aprender a revelar imagens aos 14, subornar detectives aos 20 e fotografar milhares de homicídios em década e meia – foi o primeiro civil norte-americano a ter um rádio policial instalado no carro –, autointitulando-se O Famoso Weegee (diziam que usava um quadro de Ouija e era mágico por chegar aos locais do crime antes das forças da ordem; soletrar não era o forte dele, e Ouija tornou-se Weegee).

Com três cursos de meliante subterrâneo, sempre admitiu que, às vezes, encenava as suas fotografias, como a hilariante, e definitiva, The Critic, de 1943, em que duas bimbas de alta sociedade, os casacos alvos como peitos de rolas, se cruzam à porta da Metropolitan Opera com uma mulher andrajosa, já com os copos, em vestido escuro (a bamboleante frequentava um bar muito lá de casa do fotógrafo; Weegee embebedou-a e, no momento certo, lançou-a para o regaço das jet-setters).

Não há melhor retrato dos contrastes sociais de uma época. Nem The Falling Soldier ou as fotos de Capa do desembarque na Normandia captam a impotência, o horror, a mundanidade da perda humana como I Cried When I Took This Picture, de 1939, título exibicionista – será que chorou mesmo? – do momento em que Weegee vira as costas ao incêndio que consome um prédio de habitação social em Brooklyn para se fixar nos rostos de Henrietta Torres e da filha Ada, cuja sobrinha bebé, neta de Henrietta, arde no último andar após as escadas colapsarem, impedindo o acesso aos bombeiros. É terrível, e é a Pietá de Weegee. O escumalha Ascher Fellig sempre quis ser um artista. 

Santos e ...

Os factos mais interessantes dos 715 mil documentos do Luanda Leaks não são os que cimentam suspeitas de desvio de centenas de milhões de dólares do Estado angolano pela princesa de Baku – não são todas as meninas princesas dos seus pais? (o novo hashtag da engenheira Isabel, #perseguição, é impagável). São os que desnudam, em relatórios, emails e folhas Excel, a poderosa rede de interesses e cumplicidades da soberana com banqueiros, empresários, altos técnicos de consultoria, contabilistas, agentes de comunicação e governantes portugueses há mais de uma década. E ninguém se preocupa com a politização do sistema judicial angolano que o timing e as características do processo movido pela PGR local só perpetuam?

... Pecadores

O problema de Luís Montenegro não é Rui Rio. É Luís Montenegro. O problema de Joacine Katar Moreira não é o Livre. É Joacine Katar Moreira. O problema de Rui Rio não são os inimigos internos do PSD. É Rui Rio. Se Montenegro tentasse compreender porque perde mais eleições do que Tino de Rans, o seu futuro melhoraria. Se Joacine parasse de imaginar que é a Rosa Parks de Bissau, o seu futuro melhoraria. Se Rui Rio se esforçasse por sobrepor a convicção à casmurrice, o seu futuro melhoraria. O maior inimigo que temos somos nós próprios.

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
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