www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 27 jan. 20:55

Kobe Bryant era o rapaz que realizou o nosso sonho

Kobe Bryant era o rapaz que realizou o nosso sonho

Ver o Black Mamba jogar era como assistir ao nosso sonho tornado realidade. Ele encarnava tudo o que nós queríamos ter sido e não conseguimos - mas ele conseguiu. - Opinião , Sábado.

Para um fã de basquetebol, crescer no final dos anos 1980 significava esperar religiosamente pelo fim-de-semana para ver a "magia da NBA". Se bem me lembro, a televisão portuguesa dava então apenas um jogo semanal - e raras vezes era aquele que queríamos ver. Para acompanharmos o dia-a-dia da NBA, tínhamos de ir à biblioteca espreitar os resultados que iam saindo, com atraso, no Record ou n’A Bola. Seguir ao vivo as equipas e jogadores preferidos era um privilégio só ao alcance daqueles que tinham antena parabólica e conseguiam ver os resumos na CNN ou ver a transmissão dos jogos num canal alemão (seria a ZDF?). A solução era gravar os jogos, ficar com os melhores, e passar as cassetes VHS aos amigos para visualizações intermináveis que aos poucos iam danificando a qualidade da fita.

Relacionado De Jordan a Trump: As principais reações à morte da antiga estrela da NBA Kobe Bryant "Pediste-me a minha energia, dei-te o meu coração". O poema de Kobe sobre basquetebol Kobe Bryant, o perfil do génio que mais se aproximou de Jordan

Nesses anos havia muitos fãs de Magic Johnson, Isiah Thomas ou Larry Bird. Mas aquela era uma nova era. Uma em que Michael Jordan era rei e senhor. Era a ele que, diariamente, tentávamos imitar no campo. Nos gestos e no estilo: a fita elástica no antebraço esquerdo (supostamente para absorver o suor da testa), os calções abaixo do joelho, as botas – Air Jordan, claro –, os lançamentos a cair para trás, o saltar de um lado do cesto e acabar a lançar do outro lado… Todos os movimentos eram alvo de análise apaixonada, discussão acesa e cada feito recebido com estupefação.

Numa era em que não havia internet, a única hipótese de sabermos que outros andavam a fazer o mesmo era cruzarmo-nos com outras equipas, participar em torneios da escola ou em campeonatos de streetbasket. Nem sequer pensávamos que, um pouco por todo o mundo, milhões de tipos da nossa idade também queriam "ser como o Mike". Muito menos que algures em Itália, onde o pai jogava, um rapaz de olhos rasgados fazia o mesmo que todos nós – só que melhor. Muito melhor.

Lembro-me bem de Kobe Bryant ser apresentado como a "next big thing" do basquetebol. O verdadeiro sucessor de MJ. Aquele que ia preencher as expectativas, ao contrário de outros que vieram antes dele como Grant Hill, Vince Carter ou "Penny" Hardaway. Com a camisola dos Lakers, Kobe mostrou logo que era diferente. Numa equipa dominada pelo já veterano Shaquille O’Neal, não teve medo de assumir responsabilidades, marcar posição – muito menos de entrar em conflitos. Ganhou algumas vezes, perdeu muitas mais. Mas mostrou que os recordes são feitos para serem superados. 

As comparações com MJ foram incontáveis. Vê-lo jogar era como assistir ao nosso sonho tornado realidade. Ele encarnava a realização de tudo o que nós queríamos ter sido e não conseguimos. Tornou-se uma lenda.

Em 2010 voltou novamente às finais da NBA, não só para defender o título, mas também para reeditar uma final mítica, entre os LA Lakers e os Boston Celtics. Lembro-me de estar a olhar para o calendário dos jogos e aperceber-me que se a final desse ano tivesse mais de quatro jogos teria a hipótese de assistir a pelo menos um, já que ia estar em Washington em junho desse ano. Com a série empatada um a um, e a certeza de que o jogo cinco seria em Boston, não hesitei: uma semana depois, dois bilhetes comprados pela internet chegavam a Lisboa.  

Nesse 13 de junho chegámos cedo. As equipas estavam empatadas, com duas vitórias para cada lado. Vencer a quinta partida daria direito a viajar para a Califórnia a uma vitória de se sagrar campeão. E equipa da casa contava com Kevin Garnett, Paul Pierce, Rajon Rondo e Ray Allen. Os visitantes com Pau Gasol, Derek Fisher e, claro, acima de todos os outros, Kobe Bryant.

O início foi equilibrado. Kobe estava mais interessado em motivar os companheiros, em envolvê-los, indiferente aos apupos da bancada. Os adeptos odiavam-no – mas apenas por ser tão bom. Ao intervalo Boston parecia ter o jogo controlado. Mas no terceiro período, a Black Mamba acordou. Começou com um lançamento simples. Seguiu-se um "alley-hoop" com uma mão. Continuou com um triplo. Mais um lançamento. Lances Livres. Outro triplo. Cesto e falta. Ao todo, foram 17 pontos consecutivos de apenas um jogador dos Lakers contra toda a equipa dos Celtics. Kobe estava "on fire." Na primeira fila, Dwayne Wade deliravam. Os adeptos dos Celtics desesperavam – e eu estava feliz por estar ver um de "nós" a mostrar como se fazia.

Naquela noite, a performance de Kobe não chegou para vencer. Os Celtics ganharam 92-86 e foram para LA a uma vitória de se sagrarem campeões. Mais tarde, vi pela TV um repórter perguntar-lhe na conferência de imprensa se estava confiante que iria "conseguir ganhar os dois jogos em LA?" Kobe respondeu, com a mão esquerda encostada à cara: "Nada confiante". E riu-se. Os Lakers ganharam a sexta partida. E a sétima. Tornaram-se bi-campeões e Kobe foi eleito o MVP das finais com uma média de 28.6 pontos, 8 ressaltos e 3.9 assistências. Reforçou o seu lugar na história. 

Anos depois, como despedida, deixou-nos uma carta de amor ao basquetebol. Mais do que ter-lhe valido um óscar, esse poema explica porque só ele conseguiu o que milhões tentaram - e falharam. Ontem morreu um de nós. 
Obrigado por tudo.

NewsItem [
pubDate=2020-01-27 21:55:59.0
, url=https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/nuno-tiago-pinto/detalhe/o-rapaz-que-realizou-o-nosso-sonho
, host=www.sabado.pt
, wordCount=903
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_01_27_1484637688_o-rapaz-que-realizou-o-nosso-sonho
, topics=[opinião, nuno tiago pinto]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]