www.publico.ptruben.martins@publico.pt - 26 jan. 08:40

Entre o cá e o lá, uma vida que não espera

Entre o cá e o lá, uma vida que não espera

Morar nos subúrbios é ser símbolo de um tempo que todos os dias perdemos e que já não volta. Fiz as contas: este mês vou perder sete dias de trabalho entre o cá e o lá.

Um exército de nós, aos magotes nos átrios das estações e nas paragens dos autocarros, todos os dias os mesmos, às mesmas horas. À espera entre o suprimido e o atrasado. Agarrados à rotina e fartos dela. Cansados! Os primeiros a sair, os últimos a chegar. Empurrados para longe dos sonhos e ambições pelo parco salário que resta nos últimos dias do calendário.

Celebramos o vazio das viagens de olhos postos no ecrã, como se tivéssemos colectivamente deixado de saber esperar, de ter tempo só para existir e simplesmente não fazer nada. A ideia de não aproveitar o (limitado) tempo que nos resta consome-nos a existência. Mas o que nos mata é aproveitar o tempo assim, de cabeça para baixo, presos a uma insanidade consciente que nos prende e não nos larga.

Fartos dos feeds intermináveis cada vez menos interessantes — e já longe de saber de cor o nível em que estamos naquele joguinho infindável de alinhar os doces da mesma cor. Morar nos subúrbios é ser símbolo de um tempo que todos os dias perdemos e que já não volta.

Presos ao trânsito que a rádio, a cada manhã, nos anuncia como “complicado” como se fosse uma novidade. Imunes à passagem do tempo que vemos escapar na faixa da direita de uma qualquer via, que de rápida parece só ter o nome. A pensar no sábado que tarda ou a sonhar com as férias de um dia que há-de vir. Num marasmo constante, perante a rotina que nos consome. Tudo até que a vontade da novidade leve os corajosos a arriscar largar tudo e sair para outras paragens.

É perceber que a vida nos foge, mas não ter como a agarrar. Num misto entre a pressa de chegar e uma vontade de voltar para casa. Se a finitude da nossa existência nos obriga a pensar como usamos a nossa vida, viver longe do trabalho é sentir, a cada dia que passa, o peso de desperdiçar horas entre o cá e o lá. Horas que não voltam e que nem contam, mas cansam. Tempo que afecta a produtividade, a vontade e a saúde.

Os tempos revelam-se complicados (como se algum dia tivessem sido fáceis): a crise na habitação afasta a classe média de Lisboa e Porto e a eterna crise de coesão territorial obriga a quem vive no interior a se virar para o mar para ambicionar outro futuro. E se todos estamos a vir para cá o que sobra lá? Para lá dos montes ou além Tejo.

Os salários não sobem à velocidade do preço da habitação e os passes baratos não resolveram miraculosamente os problemas: o autocarro continua a vir cheio e a ser lento, o barco continua a falhar porque a manhã foi de nevoeiro e o comboio não chega para a procura. A espera, que se torna em desespero, obriga a mais um pedido de desculpas pelo atraso a quem por nós anseia nas primeiras horas da manhã.

O centro da cidade torna-se na utopia, coisa de gente afortunada que teve hipótese de morar onde as oportunidades se criaram. Quando na realidade a narrativa falhou: melhor formação nem sempre se tornou num melhor salário e as décadas estudo falham em dar um melhor futuro. Os subúrbios tornam as coisas ainda mais desiguais, acentuam as disparidades e empurram os sonhos para um calendário indefinido.

Adia-se a saída de casa dos pais, o curso que gostávamos de tirar, o café com os amigos, o nascimento de um filho, o fim-de-semana fora ou as férias de sonho. Adia-se a vida, enquanto vemos o tempo passar na janela mal lavada do comboio. Pode ser que um dia a gente tenha o tempo que hoje na vida nos falta!

Repete-se o lamento, ouvem-se os vários “compreendo”, mas nada nos salva da selva urbana onde fomos remetidos ou continuamos constrangidos, empurrados por quem chega e parte a cada instante. Eles, que chegam de “low cost”, tornaram a vida por cá “high cost”. Quem manda também não ousa apresentar solução. Faz parte: “as regras de mercado” tornam-se a única desculpa, com quem o Estado nunca quis dividir tal desleixo e responsabilidade.

Morar nos subúrbios é saber que, quando se voltar ao dormitório, as forças que restam não darão para muito mais. E aí lamentar as (poucas) horas que faltam para o despertador voltar a tocar de forma repetitiva a execrável banda sonora que marca o arranque de mais um dia. É um acordar já cansado, numa rotina que se repete ao expoente da loucura.

Parei e fiz as contas: este mês vou perder sete dias de trabalho entre o cá e o lá. E entre cá e o lá, a vida não espera.

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