sol.sapo.ptDinis de Abreu - 25 jan. 23:22

Medina perdeu a cabeça...

Medina perdeu a cabeça...

O esquema é clássico: quando os atores políticos se sentem ‘acossados’ com algo que lhes escapa ao controlo, inventam logo uma ‘cortina de fumo’ para provocar um sururu qualquer e neutralizar o alastramento da má noticia.

As notícias envelhecem depressa. Mas não foi só por isso que obteve mais eco no espaço público a reação intempestiva de Fernando Medina do que o embaraçoso relatório do Tribunal de Contas, com base numa auditoria que avaliou o negócio montado em 2018 (sob a tutela do então ministro Vieira da Silva), entre o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e a Câmara Municipal de Lisboa, que permitiu a alienação de ativos abaixo do estimado valor de mercado. 

Neste caso, a má noticia ‘mexia’ com a almofada financeira que protege o futuro dos reformados e pensionistas, pelo que tinha todos os ingredientes para ser um ‘tsunami mediático’, logo, havia que ser ‘travada’… 

De facto, o relatório do TdC ‘destapou’ a opacidade do acordo celebrado pelo Município com o IGFSS, ao apurar que este fora apenas vantajoso para uma das partes, «em detrimento da receita», fundamental para a sustentabilidade do sistema de Segurança Social. 

E aqui reside o busílis da questão e a desfaçatez de usar recursos destinados a proteger pensões, em benefício da opção política de um autarca, em conúbio com o Governo.

Incomodado com a auditoria, e temendo o eco público, Medina não foi de meias medidas, atirando-se aos juízes como ‘gato a bofe’, ao estilo de Sócrates, como se fossem um bando de incompetentes por terem ousado criticar a transação a favor de um programa de arrendamento urbano municipal, alegadamente de interesse social.

Medina não foi meigo e destratou o TdC, acusando o relatório de ser «lamentável a todos os títulos» e «tecnicamente incompetente». Os juízes levaram tempo a reagir, mas fizeram-no com uma sobriedade que faltou ao autarca, considerando «inaceitáveis tomadas de posição públicas que não respeitem institucionalmente o Tribunal enquanto órgão de soberania, os seus juízes e os seus técnicos». 

A assanhada diatribe de Medina visou, entretanto, dois objetivos: primeiro, desviar as atenções do essencial, a ponto de atribuir ao Tribunal a intenção de querer «que a Segurança Social se comporte como especulador imobiliário»; depois, proteger António Costa, afinal, o verdadeiro pai da ideia.

Vale a pena recordar que foi em novembro de 2015 que Costa deixou claras as suas intenções, ao preconizar, no debate do programa do Governo, a aplicação de parte do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social na reabilitação urbana, por constituir, na sua opinião, uma boa fonte de financiamento para dinamizar a habitação acessível e obter um bom retorno. 

Percebeu-se de imediato que a ideia era perigosa e que punha em causa a rentabilidade do fundo, porquanto a habitação social nunca poderia oferecer um bom retorno ao investimento, a menos que se orientasse apenas por critérios de mercado e abdicasse de ser ‘social’. 

A intenção de desviar verbas do fundo com esse destino deveria ter provocado um susto e arrepiado muita gente, mas, como é hábito, a indignação ficou ‘no tinteiro’, sem o menor debate tanto à esquerda como à direita. 

O resultado dessa inação está à vista . O Tribunal fez as contas e concluiu que, «a gestão dos procedimentos de alienação de imóveis não maximizou as receitas» e que a Segurança Social saiu a perder. 

Perante contornos tão nebulosos do negócio, até Paulo Pedroso, antigo ministro do setor, se sentiu obrigado a quebrar o silêncio, para lembrar o óbvio (antes de ‘bater com a porta’ no PS…), ou seja, que «a gestão financeira das reservas da Segurança Social cumpre um fim específico e não os fins gerais do Estado», pelo que tem o dever absoluto de «valorizar os ativos à sua guarda para efeitos de reforço da sustentabilidade da Segurança Social».

Mais: Pedroso discorda «profundamente de que o património da Segurança Social seja usado como instrumento para tornar mais barata a política pública de habitação». Não podia ser mais certeiro. 

A tradição de independência do Tribunal de Contas já vem de longe, quando era tido por Cavaco Silva como uma ‘força de bloqueio’, entre dúvidas sobre concessões ou auditorias apontadas como obstáculos ao Governo. 

Deveu-se, aliás, a Guilherme d`Oliveira Martins a mudança qualitativa na atuação do TdC, cujas competências fiscalizadoras passaram a ser exercidas atempadamente. 

Enquanto presidiu ao Tribunal, Oliveira Martins alterou as prioridades, valorizando a sua intervenção em tempo útil, sem descurar, contudo, as pendências herdadas do passado. 

Essas alterações trouxeram o TdC para o primeiro plano da atualidade, criando não poucos engulhos.

O ex-ministro de António Guterres tomou posse em 2005 e não faltou quem criticasse a escolha, desde o PSD ao CDS e ao PCP, por causa do seu passado em governos socialistas. Sem razão. 

Viu-se logo no consulado megalómano de Sócrates, que sobravam os ressentimentos e as queixas relacionadas com o visto prévio do TdC em obras públicas, desde subconcessões rodoviárias chumbadas até ao contrato de adjudicação do primeiro troço da rede de alta velocidade, também chumbado, e que seria a sentença de morte do TGV. 

Oliveira Martins ‘trocou’ dez anos depois o TdC pela Fundação Gulbenkian, mas deixou a sua ‘marca’ intacta no Tribunal, que pôs agora em alvoroço tanto o IGFSS como a CML. 

É esta cultura de independência que Medina e outros não toleram, porque são estorvos à sua gula, apostados em serem os novos ‘donos disto tudo’.

O que está em causa não é uma «perseguição política», atoarda que o autarca usou como capa e auto vitimização, nem os relatórios do TdC são «panfletos políticos». A realidade é que houve uma aplicação de património da Segurança Social para fins que não devem ser os seus. 

Na ânsia de mostrar serviço, Medina andou mal e fez uma triste figura, com muita cumplicidade dos media. O candidato a ‘delfim’ de Costa perdeu a cabeça…

Nota em rodapé - Rui Rio traçou um risco ao meio no PSD. Obrigado a segunda volta inédita, ganhou por ‘poucochinho’ e vale, com boa vontade, metade do partido. A maioria tangencial dos militantes ofereceu-lhe um ‘suplemento de alma’. O PS pode dormir descansado. O país, não.

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