eco.sapo.ptCarlos Marques de Almeida - 25 jan. 11:04

Pneumonia em Mandarim

Pneumonia em Mandarim

Na impenetrável e perfeita ideologia que suporta a ascensão da China, a entidade vírus simplesmente não existe, não integra a equação do desenvolvimento, nem figura no arsenal político.

Afinal o futuro do capitalismo chinês pode estar dependente de uma visão focada no écran de um microscópio. Em vez de mísseis, são exércitos de médicos, investigadores, biólogos, que detêm a chave para a solução. Em vez de forças imperialistas externas, são os mecanismos da natureza levada aos limites que constituem a nova ameaça. O capitalismo vermelho é vulnerável aos vírus.

A operação em Wuhan tem a assinatura de uma ficção catástrofe. O isolamento de 36 milhões de habitantes e a quarentena de 14 cidades é um enredo da resistência contra a reacção da natureza, contra a invasão de uma entidade estranha que entra sem aviso na corrente de transmissão humana. O mundo artificial do capitalismo chinês julga-se imune aos recursos infinitos que circulam na complexa biologia do planeta. Para a ideologia de Pequim, a China é parte de um Estado fora da natureza, a China é a condensação política e económica de uma realidade que define as suas próprias regras, a China é a entidade superlativa que encarna o espírito do futuro. A China oprime a memória da infecção na parede de vidro que delimita o laboratório, oprime os sentidos na tentativa de esmagar a doença do mesmo modo que esmaga os dissidentes. O vírus que circula pela China é uma metáfora do vírus que circula por Hong Kong, ambos representam uma ameaça existencial à economia e à organização política do Império.

Portanto, sempre que a biologia surpreende a ideologia a reacção toma a face de uma narrativa do colapso, com medidas de emergência e estado de excepção. Normalmente esta actuação política vem com a cobertura do argumento de uma ingerência externa ou com a matriz perfil de uma conspiração. Neste caso o governo chinês não recorreu a estes fragmentos luminosos que desafiam qualquer inteligência justa. Apesar da contenção, a China tem uma responsabilidade para com a comunidade internacional que não pode ser ignorada. Tal como qualquer produto made in China, os vírus viajam de avião e podem aparecer subitamente em qualquer lugar do planeta, uma poderosa analogia com a ficção de um Apocalipse Zombie.

Uma referência final à Gripe Espanhola. A pandemia de 1918 matou entre 50 e 100 milhões de pessoas, um número astronómico face aos 18 milhões de mortos da I Guerra Mundial. Talvez por esta razão só exista um monumento em França às vítimas da pandemia. De acordo com o World Bank, uma pandemia similar nos dias de hoje poderia provocar 33 milhões de mortos no espaço de 6 meses, bem como uma profunda recessão económica. Que a consciência política saiba articular a linha melodiosa da existência cívica e criativa do homem.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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