Ana Rita Guerra - 10 dez. 07:26
Canábis: entre o mito e o milagre
Canábis: entre o mito e o milagre
Há empresas que alegam que os seus produtos com CBD podem curar cancros, Alzheimer’s e outras doenças sem terem evidências. E isso é mau para todos
Quem ainda não esbarrou com um creme que promete administrar os benefícios da canábis sem o inconveniente da alteração psicoativa há-de fazê-lo mais cedo ou mais tarde. A invasão do canabidiol, conhecido pela sigla CBD, está a preparar-se mais a um ritmo mais veloz do que os legisladores conseguem enquadrar esta realidade ainda meio cinzenta da canábis parcialmente legal. Não vai esperar pela determinação da eficácia das fórmulas e combinações de componentes, que ainda é incerta devido ao espartilho legal que limitou os estudos clínicos e científicos. E certamente o marketing estará largos passos à frente de toda a gente.
A distinção entre os produtos que contêm apenas canabidiol e os que contêm também tetraidrocanabinol (THC), a substância com efeitos psicotrópicos, é importante. Produtos com CBD são legais nos 50 estados norte-americanos, enquanto produtos com THC apenas podem ser usados em metade do país. Isso explica o enorme crescimento do mercado de produtos com CBD, que vão desde calmantes para cães a cremes antirrugas e bálsamos para as dores.
De acordo com o Brightfield Group, o mercado do CBD vai passar de 5 mil milhões de dólares em 2019 para 23,7 mil milhões em 2023 e muitas marcas estão à beira de incluir canabidiol derivado de cânhamo em produtos já existentes. Os europeus estão mais que preparados para isso, a julgar pelos resultados de um novo estudo da New Frontier Data que procurou avaliar as percepções dos consumidores sobre o CBD em várias regiões do continente, incluindo Península Ibérica.
De acordo com a pesquisa, os portugueses e espanhóis que já consomem CBD são os que reportam maior satisfação com os produtos: 92% indicaram que o canabidiol afectou de forma positiva a sua qualidade de vida. É uma percentagem bastante superior à de outros países, como França (67%) e Alemanha (76%). No entanto, o conhecimento do CBD entre a população é mais baixo que a média, 44%, enquanto regiões como Suíça/Áustria e Benelux registam 69%. De todos os inquiridos, apenas 10% dos portugueses e espanhóis já tinham experimentado CBD, o que compara com 33% na Suíça/Áustria, 14% na Alemanha ou 20% na Suécia/Dinamarca.
Mais de metade dos europeus que participaram no estudo em cada região afirmaram que o CBD tem usos medicinais válidos e na Península Ibérica, 38% dos que nunca usaram produtos com canabidiol disseram estar dispostos a fazê-lo. O relatório refere ainda que portugueses e espanhóis estão entre os que mais apoiam a regulamentação do mercado (56%), apenas superados pelos ingleses e irlandeses (59%).
Este é um ponto especialmente importante neste momento, tendo em conta que a Federal Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos acaba de emitir um aviso contra as promessas de alguns fabricantes de produtos com canabidiol. Apesar de reconhecer o potencial de compostos derivados de canábis, o regulador diz ter conhecimento de que algumas empresas estão a comercializar produtos com canábis e compostos derivados de canábis de formas que infringem os regulamentos “e podem colocar a saúde e segurança dos consumidores em risco.”
É um facto que as ideias pré-concebidas sobre a canábis e o consumo de marijuana e derivados se transformaram radicalmente nos últimos anos, muito devido ao sucesso da legalização total da planta em parte dos Estados Unidos e no Canadá. O novo consumidor de canábis tem um perfil diverso do hippie gadelhudo a que a planta era associada no passado e o mercado explodiu em formatos alternativos de consumo, oferecendo desde gomas e pomadas a óleos e tinturas solúveis.
Mas há empresas que alegam que os seus produtos com CBD podem curar cancros, Alzheimer’s e outras doenças sem terem como provar essas afirmações. E isto fica, digamos, ao nível dos remédios “milagrosos” que bombardeiam os idosos com publicidade e causam dores de cabeça ao Infarmed. Entre o mito e o milagre, os benefícios da canábis estão algures no meio.
Apesar de haver consenso sobre as propriedades medicinais do CBD (e do THC), é preciso investir à séria em estudos clínicos e científicos e em regulação que garanta a eficiência dos compostos. Não fazer isso é correr o risco de transformar esta indústria numa selva onde o marketing se sobrepõe à evidência antes mesmo de garantir a legalização total da planta.