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Cultura: tem graça, mas pouca

Cultura: tem graça, mas pouca

Os concursos da DGArtes são, teatralmente falando, uma farsa de péssimo gosto, um serviço que não serve o público.

O merecimento dá poucas vezes sua voz...
Ora se isto é bom, não sei o que possa ser mau.

Comédia Aulegrafia,
Jorge Ferreira de Vasconcelos, 1619

No passado dia 29 de Novembro, a Ministra Graça Fonseca foi chamada à Assembleia da República pelo Grupo Parlamentar do PCP para responder a uma série de problemas verificados mais uma vez nos concursos da DGArtes. As questões giraram em torno dos processos das candidaturas de apoios às Artes, designadamente ao Teatro, cujos resultados irão inviabilizar ou dificultar a actividade profissional de cerca de três dezenas de estruturas artísticas elegíveis, mas que ficaram sem verba. A Ministra da Cultura contornou os problemas e, qual dama de ferro, foi cega e surda às várias interpelações apresentadas, vindas das diferentes bancadas.

Sem ênfase ou paixão apresentou números (o famigerado “malabarismo dos números” disseram algumas vozes), negou ou sublimou evidências e, numa estratégia típica de que o ataque é a melhor defesa, hasteou a bandeira dos sucessos alcançados. Como pano de fundo emergia uma visão redutora sobre a diversidade cultural e uma política poluidora e desertificadora das Artes. No final, a audiência ficou cansada e enfadada com a performance ministerial.

Diz o povo que a verdade é como o azeite, que vem sempre ao de cima. Mas, nestes casos, a verdade é dama fugidia, escorregadia e de águas turvas. Vejamos: no processo do concurso há um júri independente, ou seja, externo à estrutura da DGArtes, que depois de ter dado a sua pontuação a determinados projectos e estruturas não viu reflectido nos resultados finais a sua proposta e fundamentação, nem sequer a regra mínima de equidade ou perequação, alegadamente por falta de verbas suficientes para todos, e, por essa razão, determinou endereçar-se à Ministra, pedindo a atenção e reparação do caso.

Tal não aconteceu, e o horizonte foi, mais uma vez, luminoso para uns e sombrio para outros. Mas no dia em que se fizer um estudo sério e independente sobre o assunto, uma análise de conteúdo dos critérios de apreciação e das avaliações internas da DGArtes, será possível perceber a dimensão do enviesamento dos processos e das iniquidades destes concursos, que ano após ano têm sido denunciados, sem quaisquer consequências, e que invariavelmente repetem os desvios dos parâmetros de valoração assinalados, e poder-se-á porventura vislumbrar dessa forma a presença ou a possível contaminação de uma rede de clientelismo em tudo igual ao que se passa noutras áreas.

Estes desvios são percebidos porque:

Primo: o próprio júri diz não se rever nos resultados, e aqui convém saber qual o papel dos funcionários da DGArtes e de que forma gerem a informação e ponderação de cada candidatura; secundo: Não é aceitável que numa “Audiência de interessados” apresentada por trinta companhias não seja considerada qualquer variação da decisão anteriormente expressa, como acontece noutro concursos, em que são admitidos alguns erros na apreciação, pelo que é legítimo perguntar se não estaremos apenas perante uma figura de estilo; tertio: o júri do concurso expressou em duas declarações o seu “desconforto” o que diz muito sobre a sua perplexidade acerca dos resultados e do processo do concurso. Veja-se a primeira carta do júri, em Junho, endereçada à Ministra, já com os resultados da primeira fase, e que não obteve resposta, ficando os resultados na gaveta até depois das eleições, e a segunda carta, redigida após a inócua “Audiência de Interessados”.

Não há nada mais triste nem penoso do que vir à liça em causa própria. Vir ao particular da questão. Mas, “porque quando força há, direito se perde”, resta-nos falar de um caso concreto, já que ilumina os processos enviesados de que vimos falando.

Falemos então da candidatura do Teatro Maizum, assente num programa de criação e divulgação do teatro clássico português, menosprezado pela DGArtes, que não cumpre sequer o estabelecido nos seus parâmetros, desrespeitando até a apreciação expressivamente favorável do júri quanto ao mesmo.

A apresentação da candidatura “A comédia e a tragédia clássica portuguesa” que contempla, entre outros, a estreia absoluta de dois textos ímpares da dramaturgia portuguesa, a Comédia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, escrita cerca de 1560 e editada em 1619 e a Tragédia do Príncipe João de Diogo de Teive de 1554. Dois monumentos da cultura e língua portuguesas, duas obras únicas do Teatro português programadas para estrear no Mosteiro dos Jerónimos em 2020 e em 2021, respectivamente (já agora, senhora Ministra, pergunto: porque é que não há lugar nos palcos nacionais para este repertório português, nem sequer resposta às várias missivas enviadas sobre estes e outros projectos?).

Conforme expresso em acta, o júri considerou ser este um projecto único e singular, escrevendo que: “O campo investigativo e artístico, não deveria, pois, ser alvo de qualquer comparação a nível nacional, porque não existe entre nós nenhum grupo ou nenhuma entidade com as características do Teatro Maizum”, ou ainda “Inovar compete ao Teatro Maizum que é profissionalmente competente para demonstrar que os clássicos também são intemporais”. Contudo, mesmo com esta apreciação valorativa do júri, e a candidatura ter sido considerada elegível, ficou sem apoio.

Por tudo isto, dizemos, mais uma vez, que os concursos da DGArtes são, teatralmente falando, uma farsa de péssimo gosto, um serviço que não serve o público, e cujos desígnios estão encobertos e são em tudo contrários à ideia de valorização e promoção do património português, da diversidade artística, da Educação e da Língua e da Cultura Portuguesa. Dizia Eça de Queiroz, em Uma Campanha Alegre, em finais do século XIX, que “a instrução em Portugal é uma canalhice pública!”. Sobre a Cultura, no século XXI, por certo que ele diria algo semelhante.

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