visao.sapo.ptMargarida Rebelo Pinto - 15 nov. 15:25

Lições de amor

Lições de amor

No Flor de Sal desta semana, Margarida Rebelo Pinto agradece "ao Universo por ter nascido portuguesa e por ter a sorte de ouvir Jorge Palma" desde a adolescência. "Enquanto houver estrada pra andar, a gente vai continuar, enquanto houver estrada pra andar"

Lá fui eu para o Coliseu ouvir e ver o grande Jorge Palma, décadas depois de me ter apaixonado pelas suas músicas e sobretudo pelas suas letras, numa noite de vento e de chuva que marcam a chegada inexorável do inverno. Não fosse a motivação tão forte e teria preferido a sábia languidez do lar, aconchegada pela lareira crepitante e pelos livros que me rodeiam e me encantam, uns porque já os li mais do que uma vez, e outros porque são ainda desconhecidos que podem ou não entrar para o meu coração.

Cheguei atrasada, o Jorge estava sentado ao piano e já tinha tocado três ou quatro músicas. A sala estava cheia e as pessoas tinham os olhos a brilhar no escuro. Reparei que todas tinham os olhos a brilhar, e assistir a tal fen��meno no meio de uma multidão é uma sensação tão única que me faltam as palavras, mesmo a mim que sou escritora e que as uso como arma de defesa e de ataque, de repúdio ou de sedução, quase sempre contra o medo e a favor da vontade e sempre que acredito que é útil, necessário, ou apenas porque me apetece.

A palavra é o domínio que temos sobre o mundo. E quando as palavras se combinam com a música, a magia acontece. Mas não é uma magia qualquer, é aquela magia que atravessa décadas, gerações, séculos, que toca a eternidade. O Jorge – chamo-lhe assim porque temos uma relação de cumplicidade de décadas com conversas sempre casuais, mas sempre sinceras e interessantes – e a sua banda iam tocando aquelas músicas que toda a gente gosta, que toda a gente canta, com letras que parecem à partida difíceis e se tornam tão fáceis pela candura, pela inteligência, pela entrega, pela sabedoria que transmitem. Seria inútil transcrever aqui alguns dos seus versos geniais por serem tantos e tão bons. Estou certa de que cada leitor terá a sua ou as suas músicas preferidas do Jorge guardadas na memória e no coração. Eu também tenho as minhas, ou não fosse a poesia uma espécie de segunda vida quase secreta para mim, como o é para tantos escritores.

As letras do Jorge Palma são uma lição de humildade, de lucidez e de entrega à vida e ao amor. E é sobre essas lições de amor que me apetece escrever, porque o amor é como tocar piano, falar francês, dançar ballet ou fazer soufflé, o amor também se aprende. O que é preciso é ter – ou ganhar – humildade para aprender e reaprender ao longo da vida a dar e a aceitar de formas diferentes aquilo que acreditamos ser o amor. Aprender que todos os amores são diferentes, que aquilo que vemos em casa quando somos pequenos replicamos na nossa casa quando somos adultos, que não amamos os pais da mesma maneira que amamos os filhos, que os contornos com que idealizamos uma relação amorosa são diferentes aos 20, aos 30, aos 40 e aos 50 e que nem sempre acertamos no tempo o no modo, com o nosso coração e com a cabeça do outro.

Podemos planear a existência a régua e esquadro e depois a vida troca-nos as voltas. Não sei se existem pessoas certas ou erradas por quem nos apaixonamos, mas tenho a certeza de que existem tempos certos e errados quando isso acontece. O tempo manda muito no amor. Manda quando as pessoas se conseguem ou não acertar e manda quando é ele que fortalece os laços amorosos. A famosa expressão dar tempo ao tempo, que me punha os nervos apressados dos trinta anos em franja, tornou-se uma das minhas grandes aliadas. O tempo é que manda, e vencem o tempo aqueles que o atravessam sem perderem a voz, o coração, o encanto e a vontade de amar.

No final do concerto, sob o véu dramático da tempestade de chuva e de vento que magnetizava a cidade, regressei a casa a 90 à hora com o meu novo grande amigo que se chama Spotify – e que está na lista dos grandes amigos virtuais depois do Google e do Youtube – em modo de revisitação das músicas que ouvira instantes antes, saboreando cada verso, encontrando em cada frase mais lições de vida, e sobretudo mais lições de amor. E agradeci mais uma vez ao Universo por ter nascido portuguesa e por ter a sorte de ouvir Jorge Palma desde a minha adolescência e de poder passar o meu amor ao seu trabalho às gerações seguintes. Enquanto houver estrada pra andar, a gente vai continuar, enquanto houver estrada pra andar. Enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar, enquanto houver ventos e mar.

Obrigada querido Jorge, por tudo o que deste e continuas a dar a Portugal. Uma coisa é certa, quem gosta de ti, gostará sempre. Irás sobreviver ao tempo, do teu modo tão próprio de usar as palavras para arrumares o caos interior. É essa a tua forma de tocar a eternidade, e que bela que é.

Para o ano encontramo-nos outra vez no Coliseu, pode ser?

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