www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 15 nov. 01:13

Troca-pés

Troca-pés

É também por isso que, quando vejo os raros adultos que não se enterraram na seriedade do bem e do mal puro, mas se deixam levar pelo prazer da ironia, pela brincadeira simples, sinto-os mais humanos do que nunca, porque cresceram sem matar a criança. - Opinião , Sábado.

Entrar na capela era sempre um desafio. A rasteira, em modo troca-pés, era uma invariável que nos levava a controlar quem estava atrás. Havia os clássicos da manha que se compraziam nas passadas largas e sonoras que acompanhavam o equilibrismo do rasteirado, para a risota em surdina, típica da saudável tensão entre o lugar sagrado e a adolescência semicontida de colégio interno.

Essa malícia risonha estava lá sempre, no subtexto, nas conversas com todas as conotações, nessa codificação de um ser-se clandestino que é tão transparente como o ser-se genuíno. Mas era, sobretudo, inocente porque se dava aos pequenos prazeres do dia a dia: adorava beliscar o próximo apenas para o ver contorcer-se, mas jamais o magoaria, porque a maldade dos amigos não é muito diferente da dos pais, dos irmãos ou dos amantes, cuja ideia de tortura é levar o outro às lágrimas com gargalhadas que se arrancam numa perseguição de cócegas.

E esse modo de ser cresce connosco, por vezes travestido de um tom sarcástico que não é sarcasmo, mas que magoa os menos familiarizados como se fosse, numa certa insensibilidade à pequena dor, por reconhecermos nela meros beliscões que apimentam a vida. Mas, muitas vezes, com reação extrema a esse mal que não se ri para nós, que não se ri connosco, mas que, exclusivamente, se ri de nós, como se só existíssemos para lhe dar prazer.

É por isso com muito esforço que me armo em educador quando as minhas crianças se entregam às maldades inocentes, aos troca-pés, aos objetos que se escondem, procurando disfarçar o riso maroto.

É também por isso que, quando vejo os raros adultos que não se enterraram na seriedade do bem e do mal puro, mas se deixam levar pelo prazer da ironia, pela brincadeira simples, sinto-os mais humanos do que nunca, porque cresceram sem matar a criança.

Há anos atrás, num famoso processo, com distintos da nossa praça, aguardava-se o elevador no Campus da Justiça. Entre nós, estava um dos senadores do foro – sem dúvida, um dos que mais admiro. O elevador encheu-se, mas alguém, mal se fecharam as portas, tocou no botão de chamada. Aconteceu o habitual nestes casos: não veio novo elevador, mas abriram-se as portas do que acabara de encher, atrasando a sua partida. A advogada sinalizou um pedido de desculpa e deixou que as portas se fechassem. O decano, ocultado pela parede, esticou o braço repentinamente, forçando a abertura de portas perante a anterior prevaricadora que, agora inocente, ficou de novo em cheque. Os olhos do senador brilharam num riso infantil, alçados pelo iluminado rosto que se fazia em covinhas de criança.

Recentemente, voltei a ver essa mesma malandrice num rosto adulto. Mais alguém que parece estar a crescer sem matar a criança. Se todos crescêssemos assim, talvez todos os males se ficassem pelos troca-pés.

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