visao.sapo.ptRui Tavares Guedes - 14 nov. 08:15

O Orçamento e a pólvora da revolta

O Orçamento e a pólvora da revolta

Temos, portanto entre nós, a mesma “pólvora” da revolta que o resto do mundo. E, como se tem visto, não é preciso muito para a fazer explodir – basta não conseguir corresponder às expectativas

Descobrir o denominador comum que explique a ocorrência de tantos protestos, em simultâneo, em todo o mundo, pode parecer uma tarefa tão impossível quanto controversa. De facto, conhecendo a origem próxima de cada revolta, não é fácil detetar o que pode haver de semelhante entre as manifestações que eclodem por causa de um aumento do preço dos bilhetes de metro no Chile e os protestos consecutivos em Hong Kong desencadeados por uma lei de extradição para a China. Também pode ser difícil descortinar qualquer relação entre as imagens, que de forma diária, nos chegam do Líbano, da Argélia, da Bolívia, da Catalunha, do Haiti, do Egito, com as suas ruas e praças inundadas de manifestantes, tantas vezes em confronto com as forças da ordem. Ou até mesmo tentar perceber até que ponto todas estas revoltas têm ou não alguma ligação com o movimento dos Coletes Amarelos que, há precisamente um ano, incendiou França durante
semanas, tendo como rastilho o aumento da taxa de carbono nos combustíveis.

Se as explicações são várias e discutíveis, os factos são indesmentíveis: o mundo está a assistir, segundo várias análises, à maior onda global de protestos desde 2009, quando a crise financeira atingiu o seu pico e precipitou, por exemplo, a chamada Primavera Árabe. A dimensão das manifestações e a sua persistência, em latitudes tão diferentes e em cidades com ambientes culturais tão díspares, apenas é comparável com a que se viveu no final da década de 60, do século passado. Com uma diferença: nesses tempos, eram as ideologias que inspiravam as revoltas. Hoje, a “pólvora” é outra e vem embrulhada em várias matérias inflamáveis que, essas sim, parecem ser transversais a toda a geografia deste fenómeno: a estagnação da classe média, a perceção das pessoas de não se sentirem representadas nos órgãos de poder e de decisão, o crescimento da desigualdade económica e social, as acusações de corrupção. E, acima de tudo, um sentimento indisfarçável de frustração, que cresce à medida que as expectativas de progresso não são cumpridas, e que vai minando o desencanto entre o exército cada vez maior dos excluídos – aqueles que se encontram na zona média da sociedade, sem receberem a atenção que é dada aos muito pobres nem conseguirem alcançar os privilégios crescentes dos muito ricos.

Há também uma “coincidência” em todos estes protestos, que explodem e se desenvolvem através das redes sociais, sem líderes assumidos nem as estruturas tradicionais de apoio e de enquadramento político-ideológico do passado, mas que se vão inspirando e copiando uns aos outros: ocorrem todos numa época de abrandamento da economia mundial. Ora, segundo as previsões do Banco Mundial, a economia vai continuar a arrefecer nos próximos anos e, em consequência, este tipo de protestos tenderá a aumentar.

É neste contexto que o Governo iniciou as negociações para tentar formular uma proposta de Orçamento do Estado que possa ser aprovada no Parlamento. O que tem isso que ver com a atual onda de revolta no mundo? Tudo, pois será o primeiro ensaio para saber se consegue ou não corresponder às expectativas, em especial a que foi anunciada por António Costa como principal prioridade: o reforço dos rendimentos dos portugueses.

Após os anos da Geringonça, temos, por vezes, a tentação de achar que Portugal ganhou uma espécie de imunidade face a tudo o que de mais preocupante foi ocorrendo a nível internacional: os populistas continuam a ser residuais entre nós, não existe propriamente uma polarização crispada a nível político e, na economia, até conseguimos crescer acima da média europeia. Só que as boas notícias não podem distrair-nos de outros sinais que, por esse mundo fora, têm alimentado muitas das revoltas. Portugal é também o país onde mais de metade dos eleitores desconfiam de tal ordem dos políticos que nem se deslocam às urnas para votar. Apesar do défice zero e do crescimento de 2%, os portugueses estão, segundo o Eurostat, entre os europeus menos satisfeitos com a sua situação financeira. .

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