visao.sapo.ptAna Alexandra Carvalheira - 13 nov. 08:13

Feitiços da sexualidade. Fantasia ou fetiche?

Feitiços da sexualidade. Fantasia ou fetiche?

A diferença entre fantasia e fetiche é que a fantasia não enfeitiça, e o fetiche sim. O fetiche é uma fixação num objeto ou num ato que é necessário para a excitação e gratificação sexual. Vejamos alguns exemplos, propõe a psicóloga clínica Ana Alexandra Carvalheira

Costumo dizer que a imaginação é o único lugar onde podemos ser e fazer o que quisermos. Podemos ser magras, ruivas ou morenos e ter aquelas pernas esguias e ombros fortes. Podemos ter sexo com o nosso vizinho, despir o professor, ter orgasmos longos porque ambos sabem bem o que fazer, aterrarmos onde quisermos e com quem quisermos e para o que bem nos apetecer. Tudo gratuito e secreto. Não é fantástico?

Ainda assim, algumas pessoas sentem culpa com “tais pensamentos” – sobretudo mulheres, - e muitas outras desperdiçam esta possibilidade, sem saberem bem porquê. A fantasia sexual pode ser uma história elaborada ou um pensamento passageiro, pode envolver imagens bizarras ou ser muito realista, pode ocorrer espontaneamente ou ser intencionalmente criada. As fantasias podem ser únicas ou repetitivas. Podem ser baseadas em acontecimentos reais do passado ou serem criações únicas no imaginário do seu criador. A imaginação é um grande palco onde podemos fantasiar e ensaiar situações e estes ensaios são um bom combustível para o desejo. Nem todas as fantasias têm de se concretizar (seria um desastre!), algumas sim, mas muitas não. A fantasia sexual é normal em qualquer idade e tem a função de atiçar o desejo e a excitação.

A Isabel Freire[1] publicou um livro sobre as fantasias eróticas de dezenas de mulheres portuguesas que tiveram a coragem de lhe contar as suas narrativas mais privadas. Para estas mulheres, o sexo pode ser com um parceiro de longa data ou com um simples desconhecido, a três, na natureza, na igreja, lésbico, submisso ou dominador. Diz a Isabel Freire que «a fantasia é um espaço e um tempo de extrema liberdade. Podemos ser espectadores ou protagonistas, oferecer-nos o corpo que quisermos, suscitar desejo ardente, interagir a dois ou em grupo, com violência ou candura, num lugar quente ou frio.» Tudo pode acontecer no palco da imaginação com uma diversidade extraordinária, e ao serviço do prazer sexual.

O fetiche é outra coisa. O termo fetiche é uma palavra francesa que deriva da palavra portuguesa feitiço. Feitiço, é um objecto a que se atribuem propriedades mágicas. Mais recentemente, feitiço significa fascinação, encanto, e adquiriu uma forte conotação sexual. O Fetichismo foi relatado pela primeira vez no século XIX.

O fetiche é relativo a um objecto que estimula o desejo e a excitação sexual. O fetiche pode ser um objecto inumano (por exemplo, um sapato, para citar o mais comum) ou determinadas partes ou aspectos do corpo (por exemplo, o pé ou umas mamas com determinadas características). A diferença entre fantasia e fetiche é que a fantasia não enfeitiça, e o fetiche sim. O fetiche é uma fixação num objeto ou num ato que é necessário para a excitação e gratificação sexual.

Estamos no reino da diversidade e por isso encontramos narrativas muito diferentes, apesar de haver alguns fetiches mais comuns. Vejamos alguns exemplos.

O feitiço das cordas

Um homem heterossexual com 31 anos encontra o expoente máximo da excitação na sensação de estar preso ao ser amarrado com cordas. A excitação e o prazer advêm de se sentir preso de mãos e pés por uma mulher ou um homem. O fetiche é o próprio ato de ser amarrado com cordas. Este é o elemento chave que deve estar presente no sexo, na maioria das vezes a solo, porque este homem ainda não conseguiu integrar este fetiche numa relação. É um padrão de excitação que já vem da adolescência.

O feitiço dos lenços

Um homem com 46 anos, casado há 20, tem um fascínio por lenços postos na cabeça ou no pescoço da mulher. São lenços quadrados, de seda ou poliéster, que podem ser dobrados em fita ou triângulo e usado no pescoço ou na cabeça. Pode ser em triângulo com nó de camponesa, no pescoço com nó na frente ou de outras formas particulares mas tem que ser quadrado e ter um toque que desliza nas mãos. Este homem tem esta preferência quase desde que se lembra de ter sexualidade. Caminha na rua sempre à procura de uma mulher que use um lenço com estas características e sente uma atração fortíssima. Pede à mulher que os use nas relações sexuais e gosta de a vendar com o lenço dobrado em fita e de ser ele próprio vendado. O toque do lenço é um gatilho poderoso. A mulher nem sempre lhe apetece este complemento e ao longo dos 20 anos de casamento foram negociando e afinando a presença deste objeto na relação sexual.

As meias de seda com ligas

Outro homem heterossexual, três casamentos, desde sempre com este fascínio por meias pretas e cinto de ligas. As meias são de seda, uma textura suave e frágil, mais escuras no pé. O cinto de ligas marca a cintura e dá relevo às coxas e nádegas. Um estímulo erótico fortíssimo e absolutamente indispensável para o orgasmo dele. No princípio ela achou graça e gostava daquele jogo e do poder que exercia nele. Mas rapidamente se deu conta que este complemento era obrigatório e que o devia usar sistematicamente. E este carácter sistemático tornou-se muito cansativo para ela.

O que é comum nas três histórias é o facto de serem protagonizadas por três homens. O fetichismo é muito mais reportado nos homens e praticamente desconhecido nas mulheres, e é impossível conhecer a sua prevalência. Outro aspeto comum nos três casos é a presença de um feitiço que cumpre essa mesma função. Enfeitiçar o seu criador para o levar à excitação e satisfação sexual. Na primeira história, é o ato de ser amarrado com força e não poder escapar. Este fetiche pode ser invalidante por não ser possível na relação e por ser muito individual. Na segunda história, há um feitiço refinado. Este fetiche é perfeitamente integrado na relação sexual do casal e não tem que estar sempre presente. Na terceira história, o feitiço é mais comum e banal. Umas meias de liga transformam-se em objecto erótico imprescindível ao prazer e competem com o valor erótico da mulher que as usa. “Sou eu que exerço o fascínio, ou é o fetiche?”

O fetiche não é uma doença mas pode chegar a ser invalidante e perturbador ou mesmo impeditivo da relação. No caso da história das meias de liga, em que a parceira tem sistematicamente que as vestir, no início foi um jogo interessante para ambos mas a dada altura, ela ficou farta das ditas meias e malditas ligas. Porque tinha que ser sempre daquela maneira. É o carácter sistemático que é problemático. Nestes casos, o fetiche empobrece e prejudica o erotismo do casal porque o reduz à obrigatoriedade de umas meias de liga.

Pelo contrário, também existe o fetiche relacional e que enriquece a relação. Por exemplo no caso do homem dos lenços, trata-se de uma elaboração erótica rica que é facilmente integrada na relação sexual dos dois, sem haver a obrigatoriedade sistemática do fetiche para a sua excitação sexual. Neste caso o fetiche é um must, é uma prática que enriquece o reportório erótico do casal.

É importante dizer que o fetiche já foi despatologizado há algum tempo. O fetiche não é uma doença nem um distúrbio, mas o Distúrbio Fetichista sim. O Manual de Diagnóstico de Distúrbios Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria, define o Distúrbio Fetichista como sendo caracterizado por fantasias, desejos e comportamentos sexuais que causam perturbação pessoal e prejuízo na área social, profissional ou individual. Mas estes casos são muito raros e só nestes se justifica tratamento.

[1] Freire, I. (2007). Fantasias eróticas. Segredos das mulheres portuguesas. Esfera dos Livros.

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