www.publico.ptpublico.pt - 13 nov. 18:10

Tim Crouch aos comandos da manipulação no teatro

Tim Crouch aos comandos da manipulação no teatro

Nove anos depois de ter trazido The Author a Lisboa, o autor inglês regressa ao renovado Teatro do Bairro Alto para Total Immediate..., uma nova experiência teatral que impõe as suas regras e testa a submissão.

Na fase inicial da escrita da peça Total Immediate Collective Imminent Terrestrial Salvation, o autor inglês Tim Crouch andou pelas ruas questionando Testemunhas de Jeová. Estava interessado em escrever sobre religião, complacência e submissão, sobre a forma como “as pessoas se entregam ou se perdem em crenças religiosas e políticas”, descreve ao PÚBLICO. E acerca da escassa necessidade de prova material para aceitar a palavra dos seus líderes. Às testemunhas de Jeová, Crouch perguntava, assumidamente fascinado, se acreditavam genuinamente no fim do mundo, como é que será esse momento e que aspecto terá. Obtendo respostas distintas, ouviu milhentas explicações, como “os avanços do capitalismo ou o crescimento da homossexualidade”, tentando justificar a falência do planeta.

Aquilo que lhe interessava, no fundo, era perceber como eram aceites regras e conceitos sem qualquer necessidade de prova. E Crouch saca da manga o exemplo prático e óbvio para estes dias: “Trump pode mentir repetidas vezes e quanto maiores são as suas mentiras, mais as pessoas acreditam nele.” Também no teatro, defende, as histórias contadas “são e não são verdadeiras”, e carecem da mesma prova material. “Não sabemos, por exemplo, como são as personagens — sabemos que os actores representam as personagens, mas nada há de definitivo nisso — uma personagem pode ter a cara de muitos actores diferentes que escolham dar-lhe vida.” Também por isso, por essa ausência de uma verdade cabal e inequívoca, Total Immediate, em cena no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, desta quarta-feira a sábado, decorre em dois mundos paralelos — em palco, com a presença das actrizes Shyvonne Ahmmad e Susan Vidler, assim como do próprio Crouch; mas também através de um livro que o público será convidado a folhear, ao ritmo das instruções das actrizes, com ilustrações de Rachana Jadhav.

Total Immediate parte de uma situação de perda, em que os pais de uma criança são empurrados em direcções distintas. Enquanto o pai cria “todo um novo mundo de crenças” para lidar com a situação traumática, a mãe acaba por se afastar. E é, na verdade, a voz de Miles, o pai, que está fixada nos vários textos que compõem o livro entregue ao público. Mas sendo a voz de Miles, é também a de Crouch. Ambos são autores, ambos são manipuladores da cena, ambos são desafiados pelas personagens. “Claro que a maioria das perdas é inexplicável, aleatória e não está ligada a qualquer estrutura de crença”, enquadra o autor. “Mas em vez de aceitarmos isso, o instinto dos seres humanos é o de criar ordem, estrutura e crenças que possam desafiar a absoluta natureza caótica e arbitrária da nossa existência.” E esse instinto, afirma, é comum à religião e à arte: ambas tentam atribuir “um sentido à perda e à nossa existência sem rumo”.

PÚBLICO - Eoin Carey PÚBLICO - Eoin Carey Fotogaleria Eoin Carey Manipulação e controlo

A fim de desenvolver essa voz autoral de Miles em busca uma qualquer ordem, Tim Crouch estudou uma série de seitas religiosas, entre as quais a de Jim Jones — que liderou o suicídio colectivo de 900 pessoas — e a de Heaven’s Gate — que levou ao suicídio de 39 pessoas, em 1997, convencidas de que assim alcançariam uma nave espacial que seguia na cauda do cometa Hale-Bopp —, nas quais encontrou alguns elementos comuns que passou para o relato da sua personagem: “Manipulação e controlo, alteração frequente dos nomes dos seus membros, regras comportamentais muito restritas que reduzem a individualidade.”

Essa mesma ideia de individualidade comprometida é uma ferramenta operativa de Total Immediate e testa a relação que a peça desenvolve com o público. Dispostos em círculo à volta dos actores, os espectadores são convidados, a partir de determinado momento do espectáculo, a ler algumas passagens. É uma forma de Crouch avaliar também até que ponto quem assiste à peça pode ser manipulado e tornado cúmplice da narrativa que lhe é proposta. “Quando escrevi o texto”, confessa, “tinha a esperança de que houvesse alguns gestos de recusa. E o autor, eu, Tim Crouch, fica triste, por vezes, por não termos momentos de negociação com o público sobre se deviam apoiar esta narrativa. Mas o que é fascinante para mim é que, até agora, as pessoas dizem ‘Sim’, levantam-se e fazem sempre aquilo que lhes é dito para fazerem. A ficção, aqui, é suportada não pelos actores, mas pelos espectadores, que lhe dedicam a sua crença.”

Já em The Author, que Crouch trouxe à Culturgest em 2010, aquilo que pretendia avaliar era a automonia do público e o quanto estaria disposto a conceder a sua independência a uma ideia de colectivo. Em Total Immediate isso volta a estar presente, em consequência de também num comício político ou num encontro religioso existir uma imersão no colectivo. É essa qualidade, acredita, que faz com que a tolerância pelas opiniões contrárias e pelo desrespeito das regras comuns se torne nulo e faça com que um cartaz anti-Trump num comício do Presidente norte-americano [o exemplo é de Tim Crouch] desencadeie facilmente espancamentos na sala.

Até porque os seres humanos, resume, preferem uma mentira vendida como certeza a uma realidade que é “contraditória, ambígua e enfadonha”. “Nenhuma religião alguma vez se apresentou como não tendo a certeza sobre nada ou pouco segura daquilo que se está a passar no mundo”. E essa sim, diz Tim Crouch, poderia fazer dele um crente.

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