eco.sapo.ptLuís Gomes - 23 out. 17:12

Eles comem tudo e não deixam nada!

Eles comem tudo e não deixam nada!

Estado Social garante a nossa paz no final da vida. Esquece-se de assinalar que os trabalhadores activos terão de continuar a ser confiscados para pagar o sistema, tal como um esquema piramidal.

Nos dias que correm, é consenso generalizado que o Estado Social significou um avanço civilizacional sem precedentes, em particular no velho continente. Segundo os panegiristas europeus, o resto do mundo sente inveja, atendendo ao bem-estar sem paralelo que é proporcionado às populações. Será mesmo assim? Será que o insigne Estado Social é mesmo a terra prometida por Deus a Abraão?

Há meses, o Instituto Nacional de Estatística veio revelar que a carga fiscal em Portugal em 2018, incluindo contribuições para a Segurança Social, tinha atingido um novo máximo histórico: 35,4% do PIB. Atendendo que o PIB português em 2018 foi de 203.896 milhões de Euros, a carga fiscal arrecadada pelo estado português resumiu-se a 71.771 milhões de Euros, aproximadamente 7 mil euros por cada português (10 milhões de habitantes, incluindo idosos, crianças, população activa…) e cerca de 17.500 Euros por agregado familiar (4,1 milhões de agregados familiares).

No meio destes valores tão absurdos, surge a questão? Se no final de cada ano, o estado português, em lugar de cobrar, entre muitos outros tributos, Segurança Social (trabalhador e entidade patronal), IRS, IVA, IA, taxas, emolumentos, decidisse apresentar uma conta única. Uma factura de 17.500 euros a cada família; o que poderia acontecer? Seguramente, uma revolução!

E porque tal não acontece? A cobrança realiza-se sub-repticiamente, através de taxas, tributos e impostos de toda a espécie, em praticamente todas as dimensões das nossas vidas: trabalhador, empresário, proprietário, viajante, pai, mãe, supervisionado…nada lhe escapa! Tudo, está claro, em nome da justiça social e para nosso conforto.

Neste verdadeiro conto de fadas, os pobres e os desfavorecidos são a grande preocupação: por eles, e para eles, existe o Estado Social; no entanto, algo intriga nesta ficção; efectivamente, como será que vivem? As últimas notícias veiculadas pela imprensa indicam que o salário médio português é agora de 951 Euros; infelizmente, e para nossa desgraça, trata-se de uma autêntica miséria, que nos faz pensar como vivem muitos dos nossos compatriotas. Vamos então realizar um exercício, tentando estimar os rendimentos e gastos mensais de uma família média na terra prometida – simulação que consta na seguinte figura.

Para não enfadar o leitor, tentarei explicar cada um dos valores da forma mais simples possível:

  • 1.902: dois salários brutos de 951 Euros, totalizando 1.902 Euros;
  • 156: Retenção de IRS de 8,2%, segundo as tabelas aplicadas para 2019 (dois titulares e dois dependentes);
  • 209: Segurança Social de 11%, a cargo do trabalhador;
  • 450: consumo médio de uma família em Portugal com alimentação e bebidas (Pordata: 2017);
  • 315: prestação de uma hipoteca com as seguintes características (Euribor: -0,36%; Spread: 2,5%; valor do empréstimo: 101.500 euros, dos quais 1.500 euros para IMT; prazo do empréstimo: 40 anos);
  • 198: prestação de um emprésitmo automóvel com as seguintes características (taxa: 12%; valor do empréstimo: 13.723; prazo do empréstimo: 6 anos). O veículo considerado tinha um valor base de 10.562 Euros, incidindo IA – 595 Euros- e IVA – 2.566 Euros-, totalizando 13.723 Euros;
  • Restantes valores: consumo médio de uma família em Portugal (Pordata: 2017), com duas notas. Nota 1: para o valor da Gasolina, estima-se que a família realize aproximadamente 20Km por dia útil do mês, um valor por litro de 1,3 Euros e um consumo médio do carro de 7 litros por cada 100 Km. Nota 2: o valor do IMI resulta de um valor fiscal em torno a 80 mil euros e uma taxa em torno a 0,35%/ano.

Importa assinalar que no nosso exercício praticamente não existe poupança; apenas de 72 Euros. É natural. Infelizmente, a maioria das famílias portuguesas espera pelos subsídios de Férias e de Natal para tapar despesas extras ou adicionar algo ao seu pequeno pé-de-meia.

Agora, vamos calcular o valor arrecadado pelo estado, tal como consta na seguinte figura:

  • O Custo total corresponde à despesa dos empregadores privados pelo trabalho de dois colaboradores, adicionando-se 23,75% sobre o salário bruto: assim temos, 2.354 Euros (1902 + 1902 × 23,75%). Desta forma, estes 23,75% correspondem a 452 Euros (1902 × 23,75%);
  • O IRS e a Segurança Social foram valores já anteriormente explicados;
  • Os 253 euros correspondem a diversos itens: (i) 25,5 Euros ao IVA da alimentação, assumindo uma premissa conservadora de uma taxa de apenas 6%; (ii) 4,7 Euros ao IMT da prestação, cerca 1,5% da prestação da casa; iii) 20,8 Euros ao IMI, já explicado; (iv) 45,5 Euros ao IA e ao IVA da prestação do carro, atendendo que estes impostos corresponderam a 25%, aproximadamente, do crédito para adquirir o carro; (v) 46,7 ao IVA (taxa de 23%) do vestuário, calçado, manutenção da casa, internet e comunicações; (vi) 38,5 Euros aos impostos e taxas da factura da água e luz, cerca de 55% do valor facturado; (viii) 52,5 Euros aos impostos aplicados à gasolina, correspondentes a 75% do valor facturado pela gasolineira; (ix) 18,5 Euros ao IVA (6%) e taxas aplicadas (cerca de 50%) na água.

Aqui chega o sobressalto: do valor gerado por dois colaboradores, cerca de 2350 euros, o estado surripia 1.070 Euros (2 354 – 1 284), 45% do total! Praticamente, esta família trabalha 6 meses, ou seja, 50% do ano, para sustentar a sua estada no paraíso. Estamos a falar de pobres! O que seria se o exercício contemplasse os propalados milionários portugueses, aqueles que ganham mais de 3 mil euros por mês! A esses, certamente, se lhes subtrai em torno de 60 a 70% do que geram para a sociedade.

Em face disto, será que este saque nos tem conduzido a algum lugar? Segundo o índice de Gini, Portugal continua a ser um dos países mais desiguais da Europa, com um valor superior à média europeia. Actualmente, apesar do avanço inexorável do paraíso na terra, apenas três países são mais pobres que Portugal na Zona Euro: Eslováquia, Grécia e Letónia. Nos últimos 10 anos, a dívida portuguesa cresceu ao ritmo de 6,7% ao ano, enquanto a nossa carteira, isto é, o PIB, cresceu apenas 1,3%, representando agora 120% do PIB; pelo meio, ainda houve tempo para uma bancarrota. A resposta à nossa pergunta: um rotundo não.

Mas importa ter fé! Talvez, quando alcançarmos a plenitude do Estado Social, isto é, 100% do que produzimos seja entregue ao Estado Social, a primeira posição seja nossa.

Deste modo, uma perplexidade nos assombra: como é possível este logro ser vendido sem qualquer resistência ou contraditório?

Através de propaganda e apelando à inveja, usando um discurso que utiliza a eterna dicotomia ricos vs. pobres, na versão da Igreja Católica, capitalistas vs. operários, na versão dos marxistas; quando, na verdade, deveria ser a seguinte: (i) os que comem à mesa do orçamento; e (ii) os que não comem à mesa do orçamento; no fundo a verdadeira dicotomia. Já dizia Camões: “Onde há inveja, não há amizade”; exactamente o propósito desta actuação, colocar portugueses contra portugueses.

Outra forma de propagar o rancor e a inveja é repetir até à exaustão que os ricos estão em fuga, não pagam a sua parte. Como? Através de offshores, o novo alvo a abater. Não há dia que não apareça alguém a vilipendiar ou a soltar alguma ignomínia sobre os offshores. Perante este contexto, de saque permanente, é óbvio que não era de esperar outra coisa: qualquer pessoa com um palmo de testa e dinheiro tentará colocar as suas poupanças “ao fresco”. Ninguém gosta de ser assaltado, é inerente à natureza humana.

A falta de acesso a serviços essenciais, em particular à saúde e educação, por uma grande parte da população, é outro dos argumentos da propaganda. Ora, se aplicássemos o mesmo conceito à comida, um bem crítico à nossa sobrevivência, como seria? Teríamos de criar um ministério para decidir tudo: o menu diário, as contratações de colaboradores (cozinheiros, ajudantes de mesa…), os locais dos restaurantes e a selecção de fornecedores. Em paralelo, um sindicato iria assegurar a representação de todos os trabalhadores do sector. Será que isto iria funcionar, a mesma refeição, o mesmo menu, a mesma apresentação dos restaurantes, a mesma marca? Com elevada probabilidade, acabaria com escândalos de corrupção, ineficiência e nepotismo, precisamente o que aconteceu na saúde e na educação nos últimos anos. Definitivamente, o planeamento central não funciona, a queda da União Soviética em 1991 já o provou. A recente evolução na Venezuela também: a fome alastrou-se a uma grande parte da população, com histórias surrealistas, de gente faminta à procura de cães na rua para tentar aconchegar o estômago.

Outra das armas para assegurar a manutenção e expansão do Estado Social: a Máquina Fiscal. Para tal, todos os dias, assistimos a um crescente poder da administração fiscal, através de legislação que retira direitos aos cidadãos, favorecendo sempre as actuações sem qualquer freio. Tal reflecte-se no quotidiano do sector financeiro, que agora recebe todos os dias múltiplas intimações para retirar quantias das contas dos “devedores” a favor do estado, sem qualquer possibilidade de defesa ou argumentação. A intimidação atingiu tais proporções, que há meses a cobrança coerciva passou a realizar-se de arma em punho.

Mas a verdadeira “Vaca Sagrada” do Estado Social é a Segurança Social, aquela que assegura a solidariedade intergeracional. Com isto, em lugar dos cidadãos decidirem onde colocarem as suas poupanças, o Estado Social garante a nossa paz no final da vida; no entanto, esquecem-se de assinalar que os activos para cobrir as reformas são residuais e que os trabalhadores activos terão de continuar a ser confiscados para pagar o sistema, tal como um esquema piramidal. Será que daqui a 20 anos existirá gente suficiente para pagar as reformas?

Em face disto, podemos tirar uma conclusão: se a família do nosso exemplo, em lugar de entregar os 1.100 euros ao Estado Social, decidisse o seu destino: um colégio para os seus filhos, provavelmente, com um custo de 500 euros mensais, um seguro de saúde (300 euros por mês para toda a família) e 300 euros para poupanças todos os meses (a 3% ao ano, significa quase 300 mil euros ao final de 40 anos). Não será hora de parar e perguntar se tudo isto faz algum sentido? Será que queremos continuar a ser escravos de uma máquina que não nos deixa decidir o nosso destino?

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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