sol.sapo.ptMaria Eugénia Leitão - 23 out. 12:15

«Quem criou o espelho conseguiu envenenar a nossa pobre alma!»

«Quem criou o espelho conseguiu envenenar a nossa pobre alma!»

Esta frase de O Velho do Restelo cruzou o meu caminho na Avenida Elias Garcia, em Lisboa, e diz: «Quem criou o espelho conseguiu envenenar a nossa pobre alma»

Trata-se de uma paráfrase da afirmação de Bernardo Soares, na obra O Livro do Desassossego: «O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana.»

Terá sido a superfície da água que inspirou o fabrico do espelho, tal como diz Bernardo Soares, porque a água reflete as imagens. E, como diz este heterónimo de Fernando Pessoa, a atitude de quem se curvava para ver a sua imagem refletida na água do rio ou do lago, é simbólica, porque é perante as entidades superiores que nos curvamos. É como se a própria postura apresentasse um pedido de desculpa pelo ato realizado.

Caravaggio pintou uma belíssima representação de Narciso, curvado sobre a água, e a lenda de Narciso, que deu origem ao termo «narcisismo», é sinónimo do tal veneno causado pelo espelho.

Segunda a lenda da mitologia grega (apesar de a origem do mito ser mais antiga e estar relacionada com lendas de outros povos, como os zulus, segundo os quais o reflexo representa a alma, que é roubada por demónios da água), dias antes do nascimento de Narciso, os seus pais consultaram o oráculo Tirésias para saber qual seria o destino do seu filho. E a revelação do oráculo foi que ele teria uma vida longa, desde que nunca visse seu próprio rosto.

Narciso cresceu, e era um jovem de uma beleza estonteante, a qual despertava a atenção de muitas pessoas, mas era também muito arrogante e orgulhoso. As jovens que não conseguiam atrair a sua atenção pediram aos deuses para vingá-las. Para dar uma lição ao rapaz, a deusa Némesis condenou-o a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se na margem do rio e definhou, olhando-se na água. Após a sua morte, a deusa transformou-o numa flor, Narciso.

O termo «narcisismo» vem desta lenda e ambos derivam da palavra grega narke («entorpecido»), a qual originou também a palavra narcótico. Para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, uma vez que estava emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza.

Mas o mito de Narciso representa também o drama da individualidade, porque revela a profundidade de um indivíduo que toma consciência de si mesmo, em si mesmo e perante si, ou seja, «no lugar onde experimenta os seus dramas humanos».

De pouco serve a vaidade, o entorpecimento emocional. Resta-nos o nosso drama individual e a certeza de que, como diz Florbela Espanca: «Sonho que sou Alguém cá neste mundo... / Aquela de saber vasto e profundo, / Aos pés de quem a Terra anda curvada! // E quando mais no céu eu vou sonhando, / E quando mais no alto ando voando, / Acordo do meu sonho... E não sou nada!...».

Assim, sermos verdadeiramente humanos é o caminho…

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