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"A propina zero não é uma utopia"

"A propina zero não é uma utopia"

Em entrevista à VISÃO, a presidente da Federação Académica de Lisboa, Sofia Escária, fala sobre os principais problemas do ensino superior: o "pouco que se fez" em relação ao alojamento estudantil, as falhas no sistema de acesso à universidade e as propinas

A Federação Académica de Lisboa (FAL) apresentou este mês aquela que vai ser “a sua luta nos próximos quatro anos”. Em entrevista à VISÃO, Sofia Escária, presidente da FAL para o ano de 2019, explica o processo que conduziu à construção deste documento, bem como a posição política da FAL relativamente aos principais temas que hoje afetam o ensino superior.

Não é a primeira vez que a FAL produz uma moção global, um documento de grande dimensão que expõe a posição dos estudantes relativamente aos vários temas ligados ao ensino superior. No geral o que mudou da última moção para esta?

Este documento é muito mais completo e aprofundado do que o primeiro. Na altura, a moção global foi publicada em dezembro de 2016, a Federação foi criada em novembro de 2014. Portanto, foi um trabalho desenvolvido durante dois anos, 2015 e 2016. Neste momento temos muito mais relatórios e estudos, que foram feitos por várias agências e entidades a nível nacional e internacional, que permitiram que tivéssemos muito mais material para trabalhar e construir estas posições políticas.

Da moção de 2016 para esta, houve pontos que se mantiveram, pontos que felizmente foram retirados, porque os problemas já não existem, e pontos que foram acrescentados devido a problemas que surgiram. Comparando os dois momentos, o balanço no geral é positivo?

Houve algumas alterações positivas, sem dúvida. Mas claramente são muito insuficientes. E acima de tudo, não são capazes de acompanhar a evolução que existiu. Há mais de dez anos que estamos para rever os diplomas estruturantes do ensino superior. Mesmo que tenham existido pequenas revisões em alguns documentos, não são suficientes para recuperar o atraso enorme que nós temos neste momento face a décadas de estagnação e de falta de aprofundamento em matéria política no ensino superior.

Na primeira moção, a Federação era muito diferente do que é hoje em dia. Atualmente tem mais do dobro das Associações de Estudantes (AE). É mais difícil estabelecer uma posição comum?

É mais desafiante e muito mais enriquecedor. Nós em 2016 éramos 11 associações e agora somos 23. Tivemos muitas reuniões periódicas ao longo dos últimos meses, em que íamos discutindo os vários capítulos da moção. O facto de serem várias posições diferentes fez com que analisássemos os diferentes pontos de vista e colocássemos na balança os prós e os contras, sem termos uma posição inicial enviesada logo para uma das ideias.

Apesar tudo, em 2019 a FAL é uma organização mais experiente, mais conhecida no meio. Tornou-se mais fácil fazer-se ouvir na sociedade?

Sem dúvida! Eu lembro-me que em 2017 era quase uma vitória sermos mencionados nos meios de comunicação social. Agora são os meios de comunicação social que nos procuram. Sai alguma notícia, sai alguma diretiva do governo sobre o ensino superior, e ligam-nos a perguntar qual é a nossa posição. E os próprios partidos políticos também. É uma das coisas que mais satisfação nos dá. É o reconhecimento do nosso trabalho e dos documentos políticos que nós temos produzido.

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ALOJAMENTO ESTUDANTIL

Um dos temas na ordem do dia é o alojamento estudantil, que na cidade de Lisboa em particular é complexo devido ao momento de especulação imobiliária que vivemos. Como é que avaliam a resposta do último governo ao panorama atual?

A resposta foi tardia e insuficiente. Apresentaram um Plano Nacional do Alojamento para o Ensino Superior, mas faltaram propostas complementares ao plano. Estamos a falar de construção de residências, que devido a toda a burocracia muito dificilmente se consegue, num ano, lançar o projeto e abrir a residência. Mesmo em termos de reabilitação de edificado, é muito complicado, não são coisas que acontecem de um momento para o outro. Faltaram claramente medidas que fossem capazes de satisfazer as necessidades urgentes e imediatas que existem. No último OE houve alguns partidos, o problema é que não foram aprovadas. Há mais de um ano que andamos a discutir alojamento mas pouco se fez, a não ser esta medida que é a longo prazo. Este ano há mais 600 camas, 300 delas são em Lisboa, é verdade. Mas são 300 camas que estão a ser faladas há dois ou três anos.

A solução está no aumento das residências universitárias? Ou num maior controlo dos preços praticados por particulares?

Isto é uma questão tão fraturante que abarca as duas realidades. Por um lado, agilizar ao máximo a construção de residências e reabilitação de edificado para residências. E o Plano Nacional de Alojamento pressupõe isso mesmo, que se vá recuperar edificado que está ao abandono, que se está a deteriorar ou que não é utilizado. Mas, mais do que isso, conceder apoios sociais aos estudantes, como o complemento de alojamento. E haver uma regulamentação do mercado, isto é, benefícios fiscais para os senhorios para praticarem rendas acessíveis aos estudantes. A Câmara de Lisboa tem feito um trabalho louvável neste sentido, entre os programas de renda acessível e todos os outros esforços.

No vosso documento fala-se no complemento ao alojamento, mas identificam alguns problemas na forma como é aplicado…

Neste momento, o complemento ao alojamento é atribuído aos estudantes de ensino superior que são bolseiros; portanto, que têm necessidades económicas comprovadas. Os estudantes que estão em residências recebem aproximadamente 75 euros, que é o valor que lhes cobram na residência. O problema são o bolseiros que não estão em residências e recebem 174 euros. Em Lisboa isto não chega para pagar metade da renda e, se chegar, é num local que não tem condições. Além disso, este complemento só é atribuído mediante a apresentação de fatura e recibo. Ora há muitos senhorios que fogem ao fisco e evitam ter contratos de arrendamento, e se os estudantes o exigirem, cobram mais 100 ou 150 euros pela renda. Este complemento não é suficiente e nem sequer é equitativo!

O valor é igual para todo o País?

Exato, e se formos comparar os preços praticados em Bragança com os preços de Lisboa… Aquilo que nós propomos é que exista uma ponderação com o preço médio de renda por metro quadrado da região onde os estudantes estão alojados. Não faz sentido receberem todos o mesmo.

Nas discussões que tiveram com as entidades responsáveis, que justificações obtiveram para ainda não haver alterações?

A justificação é quase sempre a mesma: subfinanciamento crónico. Não há mais dinheiro. Cerca de 70% do nosso sistema de ação social está dependente de fundos comunitários, e uma coisa que o governo e os partidos quase se recusam a discutir é que, quando há uns meses Alemanha e França se revoltaram e disseram que queriam que estes fundos fossem reduzidos, Portugal viu-se aflito porque depende deles. Nunca houve um investimento na ação social que pudesse comportar isto.

Luis Barra

PROPINAS

Como é que respondem aos críticos que dizem que a “propina zero” é uma utopia?

Antes de discutir se se deve ou não pagar a propina, há que perceber o que é a propina e o que ela representa. A discussão é: o ensino superior é ou não um bem público? A maior parte das pessoas que se desculpa com o facto de existir pouco financiamento ou que não pagar propinas é uma utopia, considera o ensino superior como um serviço, e portanto a propina é uma taxa. Mas o ensino superior não devia ser acessível a todos? O mecanismo de exclusão não devia ser apenas o mérito, tendo em conta as notas, as colocações e as vagas disponíveis? Há partidos e pessoas que acham que devíamos pagar mais propinas, porque desresponsabilizam o estado do papel que é assegurar a qualificação da população portuguesa.

Na moção estão também expostos alguns dados comparativos com outros países…

É quase vergonhoso admitir-se isto num contexto europeu em que existem países menos desenvolvidos que Portugal que isentam os agregados familiares de pagar propinas e atribuem mais apoios sociais. As pessoas continuam a achar que ação social é uma forma de camuflar o financiamento indireto do estado, é o estado a financiar-se a si mesmo, e isso, no nosso entender, é uma desvirtuação do papel da ação social. A propina zero não é uma utopia e estamos rodeados de exemplos que o comprovam. É uma questão de mentalidade. Se calhar não há dinheiro, mas há outras formas de conseguir um retorno financeiro.

Que formas são essas?

É tentar perceber qual é o retorno de haver gente a frequentar o ensino superior. Quando nós percebermos a importância de valorizar o ensino superior, e se Portugal atrair talento, formar talento e reter talento, vai conseguir materializá-lo e desenvolver a sua economia. Se nós não temos mão-de-obra qualificada nem jovens interessados em estudar, nem com condições para o fazer, não será possível crescer. Uma das medidas que claramente combateu o abandono escolar foi escolaridade obrigatória até aos 18 anos. E mais tarde, permitiu que houvesse menos jovens desempregados ou que começassem a trabalhar sem qualquer formação. Temos de perceber como é que os restantes serviços e áreas vão absorver este talento.

Nos últimos anos têm também entrado para a Federação associações de estudantes da Universidade Católica Portuguesa. Trata-se de entidades que atuam num sistema um pouco diferente do sistema público, nomeadamente no que diz respeito às questões das propinas. Estas reivindicações podem, no vosso entender, ser aplicadas à Universidade Católica?

A Universidade Católica Portuguesa tem muitas especificidades e, como tal, nós optámos por não nos pronunciarmos diretamente sobre a mesma na moção global. Estamos internamente a construir uma posição política sobre a Católica. Já reunimos com o gabinete de responsabilidade social. Com a reitoria tem sido mais complicado, mas o gabinete apresentou-nos toda a regulamentação e legislação que podiam ser interessantes para nós. Acima de tudo, não é a questão de pagar mais ou menos propinas que faz diferença, porque a grande maioria das nossas reivindicações dizem respeito a uma reorganização da rede, à qualidade da oferta formativa e a condições para os estudantes. Todas elas se aplicam também à Universidade Católica. Não sinto que estamos a lesar a posição dessas associações, mas sim, por agora, a ganhar mais conhecimento para ter uma posição mais sólida e mais aprofundada.

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ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

Quais os problemas que neste momento afetam o concurso de acesso ao Ensino Superior?

Este ano tivemos mais candidatos que no ano passado, o que é bom. No entanto, havia mais pessoas interessadas em estudar do que aquelas que ficaram colocadas. E isto faz com que nós tenhamos de pensar no porquê, se devemos aumentar o número de vagas, que consequências é que isso tem na qualidade da oferta formativa, como é que a oferta formativa está estabelecida... Existem muitas instituições com os mesmos tipos de curso, às vezes na mesma instituição temos várias unidades orgânicas a ministrar os mesmos cursos. E falta este tipo de informação para os estudantes, falta um guia que permita que os estudantes possam conhecer melhor qual é a oferta formativa para, em função disso, fazer a sua escolha de forma acertada. Além disso, houve políticas de elitização do ensino superior, como a redução de vagas no ano passado. Foi uma medida muito inconsequente por parte do governo. Temos de pensar também nos regimes e nos contingentes especiais de acesso, porque existe muito pouca regulamentação e conhecimento, condições inadequadas, por exemplo, quando falamos de estudantes que vêm das regiões autónomas da Madeira e dos Açores, estudantes com necessidades educativas especiais e na forma como a equipa de peritagem da DGES faz a apreciação das candidaturas desses estudantes. Ao nível do concurso nacional de acesso, as datas e os prazos em que as colocações são feitas. Defendemos que sejam feitas muito antes e soubemos recentemente que é possível, por parte da DGES.

Se é possível, porque é que ainda não foi feito?

Nós tivemos a informação de que era possível lançar-se as colocações duas semanas depois das candidaturas. A questão é que, por causa dos problemas que existem relativamente aos contingentes especiais, as equipas de peritagem analisam os alunos caso a caso e isso é que atrasa todo o processo. Devia existir alguma modernização na apreciação destes concursos.

Como é que a DGES e o Ministério reagem a este pedido?

Eles concordam mas dizem que é uma coisa gradual. Por exemplo, no ano passado, o processo de atribuição de bolas atrasou semanas porque tiveram problemas informáticos, que é uma coisa que no século XXI já não devia acontecer.

Em relação à disparidade de critérios entre cursos semelhantes, estamos a falar de quê em concreto?

Cada instituição estabelece as provas de acesso e as ponderações que bem entender. E depois, para a mesma área, várias faculdades têm critérios de acesso diferentes. Não existe uma homogeneização, não existe uma regulamentação que assegure que as condições sejam equitativas independentemente da instituição. Deve haver autonomia, sim, mas uma autonomia responsável para assegurar que os estudantes não tenham grande discrepâncias nem sintam injustiças de um curso para outro.

Por fim, propõem o aumento de seis para dez opções de cursos/faculdades na ficha de candidatura...

Não é algo que consideramos que agrave o processo em termos administrativos. Queremos evitar que os estudantes fiquem de fora do ensino superior e permitir que estes pensem de forma mais racional sobre a sua escolha.

ENSINO SUPERIOR EM PERÍODO ELEITORAL

Lançaram a moção global numa altura chave da política nacional. Tem-se falado o suficiente sobre ensino superior nos últimos dias de debate político?

Infelizmente, não. Alguns programas eleitorais omitem a sua posição em relação ao ensino superior. Sentimos que o ensino superior devia ter mais destaque nos programas e na discussão política. Queremos discutir este documento com todos os agentes políticos porque queremos contribuir para as ações do próximo governo. E a moção global vai nortear as nossas reivindicações durante a próxima legislatura.

A continuidade deste governo é algo que vos agrada?

Existiu, de facto, alguma valorização do sistema, mas não partiu apenas deste governo, partiu também da Comissão de Educação e Ciência, que é composta por todos os partidos. Vemos com muito bons olhos a maioria das políticas recentes deste governo, mas são insuficientes. E mais quatro anos nos mesmo moldes não são viáveis. Não têm necessariamente que mudar os partidos políticos, não queremos que vá para lá A ou B. Queremos é que seja feita justiça ao ensino superior.

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