www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 20 set. 01:19

Lições da história

Lições da história

O que é que eventos passados nos podem dizer sobre o futuro dos mais de 70 mil membros do Estado Islâmico presos na Síria? Muito. E não é bonito. - Opinião , Sábado.

Enquanto lê estas linhas, milhares membros do Estado Islâmico estão presos em inúmeros campos de detenção na Síria, guardados 24 horas por dia pelas forças curdas aliadas da coligação internacional que derrotou o grupo terrorista. Só em al-Hol, o maior desses campos, estão cerca de 70 mil pessoas, a esmagadora maioria mulheres e crianças. Entre elas estão milhares de europeus – incluindo várias mulheres de jihadistas portugueses e os seus filhos, quase todos nascidos no território do auto-proclamado Califado.

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A situação arrasta-se há mais de seis meses, desde a derrota final (mas não definitiva) do grupo terrorista em Baghouz. Organizações internacionais, como a Cruz Vermelha, a Amnistia Internacional ou as próprias Nações Unidas, descrevem-na como um barril de pólvora: para além das condições precárias e da mortalidade infantil, as dezenas de milhares de crianças aí detidas estão sujeitas a um processo de radicalização constante, levado a cabo pelos mais extremistas membros do grupo terrorista. Aqueles que resistiram até ao fim. E continuam a ser preparadas para ser a próxima geração de terroristas. 

A ONU pediu aos países europeus que recebam e julguem os seus cidadãos pelos crimes cometidos na Síria. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez um apelo semelhante – e os EUA repatriaram um pequeno grupo de jihadistas. Mas a maioria dos países recusou fazê-lo. Apenas alguns, França, Bélgica, Alemanha, Finlândia ou Kosovo aceitaram repatriar um pequeno número de crianças filhas de jihadistas europeus – mas apenas as órfãs. E esse regresso, como explicou o Comissário Europeu Julian King, no recente acampamento de verão da Comissão Europeia, em Reguengos de Monsaraz, não tem estado a correr bem: as crianças estão traumatizadas, viveram situações indescritíveis de violência e terão um longo processo de recuperação que ninguém sabe como vai terminar.

Alguns países, como o Reino Unido, decidiram mesmo retirar a nacionalidade aos seus cidadãos para os impedirem de regressar. Outros, como Portugal, adiam uma decisão definitiva sobre o assunto. É uma posição compreensível: seria difícil a um governo justificar à população, sempre com um calendário eleitoral no horizonte, o repatriamento de perigosos terroristas. Mas será que esse risco no curto prazo poderia prevenir um perigo bem maior no futuro? Muitos peritos na matéria defendem que sim. A História dá-nos algumas pistas sobre o que pode acontecer. 

Durante a invasão soviética do Afeganistão milhares de pessoas foram deslocadas para campos de refugiados no vizinho Paquistão. Foi nas madraças existentes nesses campos miseráveis que surgiu um grupo cujos membros se auto-intitularam de Taliban – literalmente, os "estudantes". O elementos nucleares desse grupo enfrentaram os soviéticos e depois, já nos anos 1990, viriam a dominar o Afeganistão. Para além deles, muitos milhares de muçulmanos de inúmeros países também foram fazer a jihad contra a URSS. Os seus países de origem, tal como hoje, impediram o seu regresso a casa. Osama Bin Laden é o exemplo mais famoso: a Arábia Saudita retirou-lhe a cidadania, ele encontrou refúgio no Afeganistão onde montou uma rede de jihadistas global que levou a cabo o maior atentado terrorista da história.   

Mais de uma década depois, a detenção de terroristas e de membros do regime de Saddam Hussein em prisões como Camp Bucca juntou no mesmo local aqueles que viriam a formar o núcleo do auto-proclamado Estado Islâmico e a radicalizar muitos outros que poderiam não ter seguido o caminho do terrorismo. Já em prisões como Abu Ghraib, o escândalo de abusos sobre prisioneiros por parte dos soldados norte-americanos aumentaram ainda mais o ódio contra o ocidente.

As semelhanças não são inocentes. O que se passa em campos como Al Hol, mas também Roj e Ain Issa poderá determinar se o Estado Islâmico – um grupo que já têm tentáculos espalhados por África, sudeste asiático, subcontinente indiano e norte de África – continuará a ser a maior ameaça ao Ocidente nos próximos anos. Aprender com as lições da História é fundamental para evitar que ela se repita, em muitos casos numa versão agravada. 
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