visao.sapo.ptRui Tavares Guedes - 19 set. 08:10

A decência e o combate político

A decência e o combate político

Costa e Rio demonstraram acreditar que os eleitores são menos primários do que às vezes se julga e se apregoa

Em 2008, durante uma ação da campanha para a presidência dos Estados Unidos da América, numa pequena cidade do Minnesota, o senador John McCain foi rápido a agir quando ouviu uma sua apoiante referir-se a Barack Obama, seu adversário na corrida à Casa Branca, como “o árabe”. Abanou a cabeça, pegou no microfone e deu uma reprimenda, espontânea: “Não, minha senhora. Ele é um homem de família decente, com quem, no entanto, discordo em alguns assuntos fundamentais, e esta campanha é sobre isso.”

À sua volta, os outros apoiantes aplaudiram, e o momento, registado por repórteres e câmaras de TV, ficou como um dos grandes exemplos da decência de John McCain, um antigo herói da Guerra do Vietname, que apesar de ser um republicano convicto e histórico demonstrou, ao longo de toda a vida, um forte espírito de cooperação, no Senado, com os seus colegas do Partido Democrático, sempre que entendia que isso poderia ser melhor para o futuro do país.

O mais surpreendente é que, embora este episódio tenha ocorrido num passado relativamente próximo, há pouco mais de uma década, parece ser já de uma outra era, de um tempo longínquo que pouco ou nada tem que ver com a agressividade do atual debate político, que se observa um pouco por todo o mundo.

É um facto que John McCain perdeu as eleições para Barack Obama e que, à luz do ambiente e dos argumentos de hoje, uma das razões da sua derrota até pode ser assacada a essa sua falta de agressividade nos momentos em que poderia aproveitar a raiva, o medo e a ignorância escondida dos eleitores – as armas com que, oito anos depois, como sabemos, Donald Trump ganhou as eleições a Hillary Clinton e entrou de rompante na Casa Branca para espanto do mundo.

Embora os factos sejam o que são, a verdade é que não pode valer tudo para ganhar. Acima da vitória pessoal devia estar sempre aquilo que se chama o interesse nacional. Um conceito que andou ausente em grande parte do enredo que conduziu ao processo do Brexit no Reino Unido, conforme é agora reconhecido e testemunhado pelo ex-chefe do governo de Londres, David Cameron. No livro For The Record – que sai esta semana, mas que tem estado a ser divulgado em folhetim pelo The Times –, o homem que convocou o referendo para a saída do Reino Unido da UE, animado por uma estratégia pessoal de consolidação do poder, conta como Boris Johnson trocou de campo, à última hora, só para “impulsionar a sua carreira política”.

O resto da história é aquela a que temos assistido nos últimos tempos e deriva do facto de, antes do referendo, ninguém ter ponderado seriamente sobre quais as consequências que o Leave poderia ter para o Reino Unido. O resultado é hoje um país profundamente dividido, minado por jogos e interesses pessoais, que conseguiram destruir, em três anos, aquilo que levara séculos a construir: a credibilidade do sistema político britânico, com um parlamento forte e um estilo de debate, vivo e combativo mas sempre respeitador das regras da decência, que era visto como um exemplo da democracia ocidental para o planeta.

Vale a pena recordar tudo isto neste início de campanha eleitoral, período em que, tantas vezes, se perde mais tempo a discutir as estratégias de comunicação e os ataques rasteiros do que as ideias e propostas dos candidatos. É salutar, por isso, que o tão aguardado debate televisivo entre António Costa e Rui Rio tenha decorrido num nível de serenidade e de respeito mútuo, quase em contraciclo com o resto do mundo, mas que não impediu de deixar registadas as diferenças e as semelhanças entre os dois. Quem esperava “sangue”, ao nível dos programas sobre futebol, pode ter ficado desiludido. Mas ainda bem que prevaleceu a decência no debate Costa-Rio. Significa que ambos acreditam que os eleitores portugueses são menos primários do que às vezes se julga e se apregoa.

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