www.publico.ptopiniao@publico.pt - 19 set. 06:40

O consenso social-democrata

O consenso social-democrata

O vasto consenso social-democrata existente em Portugal tem ou não tem virtudes? A meu ver tem.

Houve um período no pós-guerra em que a social-democracia se tornou de tal forma consensual que chegou ao ponto de alguém proclamar o surgimento de uma “civilização social-democrata”. Foi por essa altura que o conservador Richard Nixon proferiu a mais inesperada de todas as suas declarações: “Agora somos todos keynesianos”. E provavelmente eram. Logo a seguir sobrevieram as crises petrolíferas internacionais, instalou-se o fenómeno económico conhecido como estagflação e irromperam as primeiras críticas radicais ao Estado-Providência. Era o fim do tal consenso social-democrata.

Quarenta anos depois esse desaparecido consenso aparenta ressurgir em Portugal. O PS não precisa de reclamar a sua adesão à social-democracia dada a evidência histórica da sua identificação com a mesma; Rui Rio proclama a sua natureza social-democrata lembrando a própria designação do seu partido; o Bloco de Esquerda, através das palavras da sua líder, ensaia uma inédita, mas a meu ver legítima, aproximação à social-democracia. Alguns analistas têm revelado grande exasperação face a tão alargada convergência. Esta constituiria, no entendimento daqueles, um preocupante sintoma de despolitização da sociedade ou, pelo menos, de significativa rarefacção da oferta ideológica e política. Estaríamos, assim, condenados a conviver com um debate público empobrecido, dada a ausência de algumas correntes do pensamento político habitualmente presentes nas demais democracias europeias. Esta preocupação é compreensível e, até certo ponto, acertada. Não a compartilho, porém, até ao fim pelas razões que procurarei de seguida enunciar.

É sabido que o sistema partidário português se singulariza no contexto europeu pela circunstância de integrar como principal formação do centro-direita um partido de inspiração social-democrata. Há quem veja nisso uma grave anomalia. A sê-lo tratar-se-á de uma patologia velha que remonta à origem do regime democrático. Sá Carneiro mudou o nome do partido a fim de explicitar nominalmente a identidade doutrinária que reclamava; Cavaco Silva sempre se declarou keynesiano e, numa já longínqua entrevista a Maria João Avillez, autodefiniu-se como bernsteiniano. Estamos a falar das duas mais importantes figuras da história daquele partido.  

É um facto que, em bom rigor, e no plano estritamente teórico, há alguma dificuldade em admitir que um partido social-democrata possa assegurar a representação política de um eleitorado de direita. Um estudo elementar de sociologia política nesse âmbito revelaria facilmente a existência de uma insanável contradição. Só que a realidade histórica é sempre um pouco irredutível a tais apreciações de natureza quase disciplinar. O PSD não é um partido social-democrata puro, integra outras linhas de orientação política no seu seio, mas mantém uma inequívoca ligação ao ideário social-democrata tal como este se foi manifestando na Europa do pós-guerra.

É natural que algumas personalidades que se reconhecem no pensamento liberal conservador lidem mal com esta situação. Perturba-os esta dimensão social-democrata de um partido que gostariam de ver tributário do já referido liberalismo conservador. Existe hoje um grupo assinalável de intelectuais e de articulistas de direita a quem repugna esta suposta deformação esquerdizante do PSD e para quem Rui Rio representa a encarnação de tudo quanto detestam nessa deformação. Foram essas pessoas, a quem não falta poder de intervenção mediática, quem mais se empenhou na oposição ao líder do PSD. Ainda agora na avaliação das prestações televisivas de campanha isso foi mais do que evidente. A intelectualidade da direita conservadora e liberal portuguesa, ou pelo menos a lisboeta, abomina tanto Rui Rio quanto Catarina Martins. A Jerónimo de Sousa acham-lhe uma certa graça. Ao menos gosta de touradas como eles.

Não será abusivo afirmar que esta cisão no interior do espaço social e político da direita portuguesa terá óbvias repercussões nos resultados eleitorais de 6 de Outubro e originará um dos mais interessantes debates que se podem antecipar no futuro próximo. Os liberais conservadores têm gente de elevada capacidade intelectual ainda que pareçam demasiado aprisionados por algum pensamento anglo-saxónico. Na sua maioria patenteiam algum desconhecimento dos filósofos alemães e exibem uma atitude de sobranceria face ao pensamento francês. Veremos na altura própria do que serão capazes no domínio estritamente político.

Percebida esta dissensão é altura de retomarmos a abordagem da questão atrás enunciada: o vasto consenso social-democrata existente em Portugal tem ou não tem virtudes? A meu ver tem. Por um lado, garante um amplo entendimento em torno da necessidade de uma relevante intervenção social num país ainda marcado por doses obscenas de pobreza. Esse entendimento constitui o melhor antídoto contra os riscos de excessiva radicalização política que nas presentes circunstâncias históricas poderia levar ao surgimento de movimentos de extrema-direita. Por outro lado, contrariamente ao que se diz, este entendimento não anula a conflitualidade política, dadas as profundas divergências que se continuam a manifestar entre os múltiplos sectores que de algum modo podem ser associados à social-democracia.

Como não sou dos que acham que a democracia portuguesa possa vir a beneficiar com uma hipotética polarização do confronto ideológico e político, fico satisfeito com o facto de, quer Catarina Martins, quer Rui Rio, se auto-incluírem no tal e já tão citado consenso social-democrata. Fazem-no, naturalmente, cada um à sua maneira e, de resto, de modo diferente daquele que caracteriza a adesão à social-democracia por parte do partido em que me incluo, o PS.

NewsItem [
pubDate=2019-09-19 07:40:00.0
, url=https://www.publico.pt/2019/09/19/politica/opiniao/consenso-socialdemocrata-1887117
, host=www.publico.pt
, wordCount=840
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2019_09_19_442816051_o-consenso-social-democrata
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao, actualidade]
, score=0.000000]