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Habitação e desigualdade social

Habitação e desigualdade social

A nova Lei de Bases da Habitação é uma janela de esperança para os que anseiam por uma casa digna, mas não será uma resposta urgente para os casos mais graves de alojamento.

A casa protege, permite privacidade, favorece a integração social, contribui para se construir uma identidade, um sentimento de realização e satisfação com a vida. Ter uma casa digna, com conforto, comodidade e segurança, com áreas de ocupação amplas, sem sobrelotação, arejadas e com luz directa, sem humidade, construída com bons materiais, com casa de banho completa, bem localizada, com acesso a equipamentos e serviços de qualidade, nomeadamente de transportes, saúde, educação e lazer, perto do local de trabalho, com participação e envolvimento cívico dos seus moradores, é um direito constitucional. Não é um luxo nem deve ser um motivo de negócio. E tem de ser operacionalizado e sair do papel. Rapidamente.

A casa e o local de residência devem corresponder à satisfação de uma necessidade humana elementar e estruturante, indispensável ao bem-estar e à qualidade de vida das pessoas. Por isso mesmo, devem ser desenvolvidas pelo Estado políticas públicas de desenvolvimento integrado onde a construção de habitação de qualidade e com rendas acessíveis seja uma realidade e um factor de coesão social. Olhar para as cidades e resolver com urgência os problemas do alojamento é, sem dúvida, combater a pobreza, o comportamento desviante, a insegurança, a desertificação, a fragmentação territorial e as desigualdades entre regiões.

Quando a política de habitação é desenhada para beneficiar os interesses privados (proprietários, bancos e fundos de investimento imobiliário), as casas passam a ser activos financeiros, fonte de lucro e de acumulação capitalista. Não tenho nada contra as pessoas que querem ganhar dinheiro, de forma honesta, com o arrendamento e compra de imóveis. O que me revolta e causa indignação é não ter resposta do Estado para os meus utentes que ganham 600 euros por mês e, com sorte, pagam 475 de renda por um tecto no mercado privado.

Por causa da economia baseada no turismo e no entretenimento, os senhorios locais passaram a ser senhorios globais e sem rosto. Os moradores idosos, pobres e poucos escolarizados foram expulsos do seu ninho de socialização. Os contratos de arrendamento são, muitas vezes, de curta duração. Os trabalhadores residentes foram obrigados a deixar as suas casas para estas serem ocupadas por habitantes temporários. As casas que eram de habitação permanente são frequentemente utilizadas para fins turísticos. Os que tentam resistir são ameaçados, os que se tentam organizar para salvar o seu tecto e o seu local de residência vêem o fogo posto comer o património e as memórias de uma vida.

Com o apoio dos sucessivos governos (PS, PSD e CDS) e com toda a legislação produzida nesses períodos, a habitação tornou-se numa mercadoria, sendo o seu acesso condicionado pelas condições e exigências do mercado. Se tiveres recursos económicos, tens casa. Se não, constróis uma barraca, vives na rua, ocupas uma casa devoluta ou boicotas uma cerimónia pública governamental para repararem em ti e no teu desespero. Faz como os lesados do BES. Protesta e não te cales. O mercado fixou um preço de acesso e tu não tens forma de sonhar com esse lugar. O teu sítio, o teu local de residência, chama-se segregação social. O Estado deixou de construir casas, deixou cair aos pedaços muito do património gerido pelo IRHU, transferiu para as autarquias a responsabilidade da habitação social, incentivou as famílias a comprar casa e abriu as portas ao investimento estrangeiro através dos vistos gold e de outros mecanismos legais de acolhimento empresarial.

Enquanto este desrespeito colectivo aumenta e assume uma dimensão assustadora, principalmente nos grandes centros urbanos, os bancos lucram descaradamente. Lucram com a concessão de crédito às famílias cada vez mais endividadas, emprestando dinheiro aos empreiteiros, que montam gruas por todos os cantos das cidades, a vender casas hipotecadas às famílias que, por causa do desemprego ou doença, deixaram de honrar o pagamento da mensalidade. O capitalismo moderno não tem piedade e aposta forte no investimento imobiliário com ganhos rápidos. A mercantilização das relações sociais fez do território um objecto.

Percebe-se, assim, que o problema da falta de acesso a uma habitação digna tem uma raiz de natureza ideológica e de classe. Está demonstrado que o mercado não resolve a carência habitacional das famílias mais pobres e que a própria classe média já não tem acesso aos preços das casas em determinados sítios da cidade. Também é evidente que colocar o sector privado a executar políticas públicas dá mau resultado. No caso concreto da habitação, os benefícios fiscais agora concedidos aos proprietários na nova lei de bases aprovada por este Governo não resolvem minimamente as necessidades diagnosticadas. Trata-se de uma transferência de dinheiros públicos para os cofres dos privados, menos receita fiscal arrecadada e menos recursos para o investimento público em habitação

O que é preciso e urgente é uma nova política de habitação livre das amarras dos interesses imobiliários, da pressão e dinâmica turística e do lucro bancário. Precisamos de mais investimento público para reabilitar e construir, revogar com urgência as normas legislativas que favorecem as práticas especulativas. Por outras palavras: precisamos de coragem política para desfinanceirizar a questão da habitação. A nova Lei de Bases da Habitação é uma janela de esperança para os que anseiam por uma casa digna. Mas não acredito, sinceramente, que seja uma resposta urgente para os casos mais graves de alojamento. Não tem músculo e dotação orçamental suficiente, continua a dar a mão aos privados na crença de que a propriedade privada pode exercer uma função social e, sobretudo, ajoelha-se ao grande capital na política de gestão e ocupação dos solos.

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