observador.ptGonçalo Sobral Martins - 18 set. 21:09

Afluir de Rio em Costa instável

Afluir de Rio em Costa instável

O líder do PSD fez ver que Portugal não soube aproveitar uma conjuntura externa extraordinária: apesar dos juros do BCE e do crescimento económico da zona-euro, nada melhorou substancialmente.

Se tivéssemos de resumir, factualmente (atente-se ao advérbio de modo!), o debate entre Rui Rio e António Costa numa ideia essencial, teríamos de salientar que Rui Rio apresenta asserções com base em conhecimento macroeconómico e António Costa enumera uns pormenores estatísticos tantas vezes adulterados. E seria suficiente ficar por aqui para concluir sobre quem, também factualmente, merece a confiança dos portugueses. Em todo o caso, farei uma exposição que o comprova, para aqueles que sejam mais céticos.

Mais que me enfadar com o facto de ter um primeiro-ministro que o é sem sequer ter ganho umas eleições e através da junção de votos de partidos que só formam governo no papel mas que raramente concordam, é-me particularmente caro ouvir fãs de chico-espertismo que, durante hora e meia, só vão evocando argumentos falaciosos.

O PS tem vivido numa zona de conforto particularmente agradável, muito mais por desmérito dos restantes partidos não “desmontarem” o discurso socialista do que por mérito próprio. Costa, durante o debate desta segunda, trouxe mais do mesmo: a mesma mensagem fácil de impregnar num eleitorado pouco interessado e intelectualmente preguiçoso. E é apenas por termos uma generalidade de eleitorado assim que é possível ter António Costa como primeiro-ministro. Lá veio ele com os (frágeis) pseudo-argumentos das contas certas, das exportações e do défice baixo. E isto até teria interesse se não permanecêssemos com défice estrutural, se não existisse um desequilíbrio da balança externa e se a dívida pública nominal não tivesse aumentado nos últimos quatro anos.

Pior: António Costa tem-se vangloriado de ter a casa em ordem quando tal não poderia estar mais longe da verdade. Tendo havido um aumento da dívida nominal, os milhares de milhões de euros que devemos aumentaram e não o contrário. Simplesmente temos um melhor rácio de dívida em % do PIB, devido a questões de natureza estrutural que sucederam nos últimos anos, sem qualquer mérito governamental nisso. Ainda assim, não deixamos de dever mais dinheiro do que aquele que devíamos. E o mérito de Rui Rio entra aqui: pela primeira vez, em muito tempo, alguém conseguiu introduzir algum ruído em alguns insights deturpados do primeiro-ministro.

O líder social-democrata fez ver que Portugal não soube aproveitar uma conjuntura externa extraordinária: apesar dos juros do BCE e do crescimento económico da zona-euro, nada melhorou substancialmente, nem sequer do ponto de vista económico. Durante este mandato socialista (e de alguns dos seus familiares), a dívida pública portuguesa aumentou (sendo, hoje, uma das maiores do mundo), o défice estrutural permanece agravado (como tal, não é fenomenal ter um défice nominal de 0,2%), há um notório desinvestimento público (note bem, caro leitor: nos anos da Troika, apesar de todos os constrangimentos socioeconómicos, houve mais investimento público do que nos tempos de António Costa) e, a acrescer à equação, os portugueses têm a maior carga de impostos de sempre – repito, de sempre.

Contudo, a maioria permanece feliz, porque, apesar de tudo se encontrar factualmente mal, Costa canta ao ouvido dos portugueses e sorri com os dentes todos. Vejamos que a desinformação é tal que Mário Centeno tem sido rasgadamente elogiado pela diminuição do défice, desde o início da legislatura, quando praticamente nada é fruto do seu mérito. Analisemos, segundo uma perspetiva factual, lúcida e empírica: o défice nominal é, nada mais nada menos, do que a diferença entre as receitas e as despesas do Estado, num determinado ano. A melhoria das contas portuguesas resulta do crucial “auxílio” dado pelo BCE, que autorizou que o Estado baixasse a taxa de juro da dívida pública em 0,8 pontos percentuais, entre 2014 e 2018. Para além disso, os dividendos do Banco de Portugal aumentaram brutalmente, uma vez mais graças ao programa de compra de dívida do BCE, já que é o Banco de Portugal quem compra a maior parte da dívida pública e, a verificar-se lucro, o distribui ao Estado Português enquanto dividendos. Para finalizar, o aumento dos impostos pagos pelos portugueses e o grave desinvestimento nos serviços públicos geram a restante porção de melhoria do défice nominal. Posto isto, a única coisa que temos é um número “bonito” que é conseguido por força: 1) de pagarmos mais impostos; 2) de termos menos serviços públicos a funcionar convenientemente; e 3) de uma conjuntura externa favorável que é independente do desempenho governamental.

Ainda houve tempo para se ouvir que Portugal cresce acima da média da moeda única. Mais um aproveitamento estatístico: tal só sucede porque duas das suas maiores economias, Alemanha e Itália, atravessam gravíssimos problemas de natureza económica. Por sua vez, Portugal continua a ter um crescimento muito inferior face a muitos estados com os quais poderia ser perfeitamente comparável – como a Irlanda ou a maioria dos países do leste europeu.

Quanto ao Sistema Nacional de Saúde, Costa proferiu que o SNS se encontra melhor, agora que finda o seu primeiro mandato. Ora, vejamos que isto parece uma autêntica laracha num país repleto de cativações, maternidades sem obstetras, escassez de fármacos, demissões constantes de entidades gestoras e de quadros clínicos de hospitais e com a densidade histórica de protestos de médicos e enfermeiros.

Como último ponto, gostaria de deixar algumas notas sobre a moderação: num único debate desta envergadura a ocorrer, apenas, de quatro em quatro anos, seria evitável que se desperdice tempo com questões absolutamente acessórias, como o serviço militar obrigatório (principalmente quando já se conhece o parecer de ambos os partidos e este, sem nenhuma surpresa, coincide). Um pormenor igualmente menos feliz foi juntar, num debate de hora e meia, os dois maiores partidos nacionais e pró-europeus sem se lançar uma única questão de natureza europeísta. Por último, o facto de a televisão pública ter elegido Maria Flor Pedroso, prima de António Costa, para moderar o debate por parte da RTP não ajuda à construção de uma correta imagem de isenção, digna de uma sociedade democrática.

Economista

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