www.publico.ptpublico@publico.pt - 15 set. 13:28

Às armas?

Às armas?

O apoio da opinião pública à criação de um exército europeu só existiria se considerasse que há uma ameaça e um risco real, concreto e actual. Felizmente, (ainda?) não estamos aí.

Desde Novembro de 2018 e na sequência de declarações de Macron e Merkel, ressurgiu em certos meios o debate sobre a pertinência de criar um exército europeu. Trata-se de uma ideia antiga, várias vezes enterrada e outras tantas ressuscitada, que desta vez se motiva pelo alegado desinteresse da administração Trump em manter a defesa da Europa como uma das suas prioridades de política externa e da respectiva ambiguidade sobre o seu envolvimento futuro na NATO, bem como por uma postura considerada mais agressiva por parte da administração Putin.

A este propósito, convém talvez começar por destrinçar certos conceitos ou pelo menos colocar a questão primordial, a saber: a necessidade de defesa do território da União Europeia implica a existência de um exército europeu? No estado actual das coisas, não me parece. Vejamos.

No âmbito da PESC (Política Externa e de Segurança Comum), veio a constituir-se, por força do Tratado de Nice, a chamada PESD (Política Europeia de Segurança e Defesa), que se dotou de estruturas políticas e militares permanentes em Bruxelas, que lhe permitiriam o controlo político e a direcção estratégica de operações de gestão de crises, tendo-se criado no ano seguinte, 2004, a Agência Europeia de Defesa (EDA), uma agência intergovernamental orientada para o desenvolvimento de capacidades militares, investigação, aquisição e coordenação no âmbito dos armamentos. Paralelamente, foi aprovada a Estratégia Europeia de Segurança (EES) que identificou desafios e definiu objectivos. Digamos, portanto, que existem, ainda que de uma forma relativamente incipiente, estruturas e instrumentos de defesa cuja acção pode ser aprofundada.

Relembre-se que o artigo 42.° do Tratado da União Europeia ocupa-se desta matéria e que o seu n.° 7 estabelece que “Se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas. Tal não afecta o carácter específico da política de segurança e defesa de determinados Estados-membros”.

Mesmo a admitir-se que a defesa autónoma da Europa exigiria a criação de um exército europeu, algo que contesto, a segunda questão que importaria responder seria: um exército para se defender de que inimigos?

A resposta habitual costuma apontar uma série de ameaças que vão desde o terrorismo, os ciberataques, a vulnerabilidade das fronteiras, a Rússia, a defesa dos aprovisionamentos de energia, as ameaças híbridas, etc. Para além do facto de não me parecer que um exército comum seja o meio adequado ou necessário para contrariar tais ameaças, resta a alegada agressividade russa. Ora, mesmo que se aceite que a Rússia teria planos militares agressivos contra Estados-membros, diria que enquanto não se demonstrar que a NATO não estaria à altura de lhes fazer face, a ideia de constituir um exército europeu a título preventivo me parece, no estado actual das relações externas, uma quase provocação cuja dinâmica armamentista teria um custo/benefício muito questionável.

Mas há ainda os que entendem que a Europa deveria munir-se de musculatura militar suficiente para intervir fora do seu território, participando autonomamente na gestão de crises internacionais noutras zonas do globo. A esses responderia que o quadro institucional adequado é ainda o da ONU e que enquanto a UE não tiver assento como tal no Conselho de Segurança, não se percebe por que razão a sua participação em tais operações só seria viável através de um exército comum. E isto para não referir que a pretensão de criar um braço militar para actuações no exterior de uma União que é essencialmente política e comercial me parece uma contradição com a alegada promoção do multilateralismo no âmbito da ONU defendido pela UE (releia-se o já citado n.° 7 do artigo 42.° do Tratado).

Creio que, para além dos aspectos objectivos acima referidos, importaria esclarecer previamente se existem neste momento condições subjectivas para um tal projecto. Explico-me, colocando apenas as seguintes perguntas: a) Como se recrutaria esse exército? A partir de uma autoridade central ou com base em destacamentos que lhe seriam atribuídos pelos Estados-membros? E em que proporção nacional? b) Qual a dimensão de um tal exército? Comum, e portanto paralelo aos exércitos nacionais, ou único (como a moeda)? c) Como e quem organizaria o seu comando militar? Como e quem o dirigiria politicamente? d) Como seria financiado? Como seria equipado? Onde seria estacionado? Espalhado em brigadas, localizadas em cada Estado-membro, o que perante a definição da ameaça principal a Leste me parece estapafúrdio, ou concentrando o grosso das suas componentes em territórios pré-determinados?

Outra dificuldade que, ainda que superável, acrescentaria importantes riscos de atritos entre os próprios Estados-membros da UE diz respeito à necessária coordenação sobre o fornecimento dos equipamentos para a operacionalidade de um tal exército. É sabido como certos Estados não abdicariam da produção dos seus próprios meios de defesa e combate, desde o simples municiamento até aos veículos mais sofisticados, seja para unidades de terra, de ar ou marítimas. E se a perspectiva de uma indústria comum de armamento me parece, na actual conjuntura, totalmente impensável, que dizer da indispensável organização de um serviço autónomo de informações, do acesso partilhado a satélites e, sobretudo, uma vez concretizado o “Brexit”, a disponibilização do arsenal atómico francês.

Enfim, se se considerar que a criação de um exército destes obrigaria à revisão dos tratados, algo que julgo actualmente extremamente difícil e improvável, e a isto juntarmos a análise política de quais são verdadeiramente as prioridades da UE tal como percepcionadas pelos cidadãos europeus, concluiria que o apoio da opinião pública para a aplicação de importantes verbas para a sua criação, em prejuízo da educação, do combate às alterações climáticas, da saúde, da investigação, da coesão, etc., só existiria se considerasse que há uma ameaça e um risco real, concreto e actual. Felizmente, (ainda?) não estamos aí.

Fontes:

http://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/security/20190612STO54310/defesa-esta-a-ue-a-criar-um-exercito-europeu
https://ledrenche.fr/2019/05/pour-ou-contre-une-armee-europeenne/
https://www.revistamilitar.pt/artigo/600

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