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A mãe fluvial

A mãe fluvial

O rapaz de ar enfezado, magricelas e de buço visível mas longe ainda de ser um bigode, continuou com o seu fraco parlapiê de incompreendido orgulhoso.

Quando a mãe acabou de esmagar a terceira lata de cerveja vazia, colocando-a na terra ao lado da toalha de praia, o discurso lamuriante do filho adolescente tornou-se quase tolerável.

— Levo a mal as coisas que me dizem. Sou sensível, não tenho culpa.

— Pois, és assim — disse, num fio de voz desinteressado.

Depois, efectuando uma manobra que revelava anos de experiência piscatória em geleiras, retirou outra lata de cerveja húmida do frio, esticando apenas o braço esquerdo sem mexer o resto do corpo estirado à torreira solar.

Cláudia Lucas Chéu

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— Quero lá saber que ninguém me entenda. Não preciso de amigos. Passo muito bem sozinho. Não é, mãe?

A mulher que, entretanto, abrira a quarta lata de cerveja e se congratulara em silêncio com aquele estalar de cápsula, limitou-se a erguer o tronco da toalha e olhar para o rio, avistando crianças alegres fora de pé, empoleiradas em bóias com formatos de animais exóticos.

— Não achas, mãe? — insistiu o rapaz.

— Hum, o quê? Desculpa, estava distraída.

— Não preciso de amigos — reafirmou o filho.

— Não é bem assim — disse, e deu vários goles de cerveja de seguida. — Não preferias passar férias com os teus amigos, se os tivesses, do que vires todos os dias à praia comigo? Fazemos isto desde que nasceste. Não estás farto?

— Não, és a minha pessoa preferida.

A mulher soltou um suspiro mínimo, agitando levemente o cabelo seco cor de caju. O filho, até à data deitado de barriga para cima, soergueu-se da toalha turca num padrão com cubos de Rubik, e olhou para a mãe:

— Não gostas da minha companhia?

— Claro que sim — mentiu a mulher. — Que raio de pergunta. Sou tua mãe.

— E então?

— Lá estás tu a levar a mal o que te dizem. Nessa parte tens razão, ficas inflamado por tudo e por nada, que chatice.

— Preferias passar as férias sozinha ou com outras pessoas? — perguntou o rapaz.

— Claro que não — tornou a mentir a mulher, esvaziando o resto da lata num só trago e desviando a conversa. — Por acaso, estou cheia de fome. E tu?

— Não — respondeu o moço, ainda desconfiado com a franqueza do amor maternal.

— Tenho bolachas com baunilha, com chocolate, e de água e sal.

— Não quero nada.

— E uma cerveja, queres? Só já tenho uma, mas posso dar-ta — explicou a mulher, oferecendo o que de melhor tinha consigo.

— Eu não bebo álcool, mãe.

— Sei bem. Podias começar a beber, é isso. Uma cerveja não faz mal a ninguém. Podia ser que ficasses mais animado.

— Belo conselho de mãe. Não, obrigado — e voltou a deitar-se na toalha, olhando o céu sem nuvens, ensimesmado.

— Vou ao banho. Anda — convidou a mãe, esmagando a quarta lata de cerveja e colocando-a ao lado das outras três.

— Estou bem aqui.

— A água está boa, ainda nem deste um mergulho.

— Estou bem.

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A mãe levantou-se, encaminhou-se um pouco zonza até à linha da água. Não sabia nadar. A praia fluvial sem ondas não atemorizava quem não domina a força da gravidade dentro de água. Ao mergulhar no rio, deixava de ouvir a voz nasalada do filho. E isso era bom.

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