sol.sapo.ptsol.sapo.pt - 23 jul. 17:00

‘Muitos achavam que os nazis seriam menos violentos quando chegassem ao poder’

‘Muitos achavam que os nazis seriam menos violentos quando chegassem ao poder’

No primeiro volume da sua aclamada trilogia sobre o Terceiro Reich, o historiador Richard J. Evans discute as causas que levaram os nazis ao poder, fala sobre o carisma de Hitler e aponta o dedo à inação do povo alemão para lhes fazer frente.

A dolf Hitler dizia «aos ouvintes aquilo que eles queriam ouvir», explica Richard J. Evans. «Empregava uma linguagem simples, direta e inteligível para as pessoas comuns, com frases curtas e palavras de ordem potentes e emotivas. [...] Muitos dos que ouviram os seus primeiros discursos disseram que ele parecia falar do coração e expressar os receios e desejos mais profundos que eles próprios sentiam». A citação é retirada de A Ascensão do Terceiro Reich (Edições 70), o primeiro volume da aclamada trilogia do historiador britânico, que Ian Kershaw, o biógrafo de Hitler, considerou «a melhor história em qualquer língua sobre a época desastrosa do Terceiro Reich». Em entrevista ao SOL, Evans, que além de especialista na história europeia do séculoXIX e XX é presidente do prestigiado Wolfson College, em Cambridge, explica por que aderiram os alemães à retórica nazi e alerta para as ameaças à democracia que se perfilam nos nossos dias. 
 

Dedicou os dois primeiros capítulos de A Ascensão do Terceiro Reich às circunstâncias que prepararam o caminho para o triunfo do nazismo. Foi sua intenção fazer nestes dois capítulos uma espécie de ‘Pré-História’ do fenómeno nazi?
 

Sim, a minha preocupação era: 1. Quais foram as origens políticas e intelectuais do nazismo e 2. Quais foram as condições que tornaram possível o seu advento. Existe uma longa tradição de olhar para trás para a história alemã para encontrar respostas a estas questões, mas isso vem principalmente da propaganda do tempo de guerra. A interpretação dominante nas décadas de 1970 e 1980 colocava a ênfase nas estruturas políticas e sociais do Império Bismarkiano e Guilhermino [do kaiser Guilherme II, «um homem bombástico, presunçoso e extremamente loquaz», que desprezava a democracia] como uma espécie de antecâmara do Terceiro Reich, mas eu achava há muito tempo que essa visão subestimava a importância dos elementos liberais na cultura da época, assim como a força do movimento social-democrata, a ascensão da cultura modernista, a imprensa de massas, os partidos políticos e muito mais. A estigmatização da oposição como ‘antipatriótica’ por Bismark (que lhes chamou «inimigos do Reich») e as severas limitações ao poder da legislatura foram importantes na preparação do que aí viria, mas as verdadeiras mudanças vieram com a Primeira Guerra Mundial, que brutalizou e militarizou a cultura política, polarizou a sociedade e erodiu a legitimidade da democracia de Weimar. Se houve uma pré-história do fenómeno nazi em organizações como a Liga Pan-Germânica, foi muito marginal. Só na década de 1920 é que as ideias ultrarradicais de direita, incluindo o antissemitismo, entraram no mainstream político. Ao mesmo tempo, temos de recordar que os nazis conquistaram menos de 3% dos votos nas eleições de 1928. Nessa altura parecia que a democracia de Weimar se tinha estabilizado. A sua subida a partir de 1929 foi sobretudo um produto da Depressão.

Victor Klemperer [professor na Universidade de Dresden, de onde acabaria por ser demitido em 1935 por ser judeu] perguntava-se no seu diário quem se seguiria: Hitler ou os comunistas. Chegou a haver uma hipótese real de os comunistas tomarem o poder na Alemanha?
 

Nem por isso. Não estavam armados e teriam sido facilmente derrotados pelas Forças Armadas. Os comunistas e os sociais-democratas tiveram mais votos que os nazis em 1932 mas estavam demasiado divididos para lhes fazer frente. No entanto, foi o medo dos comunistas que levou muitos milhões de alemães da classe média a apoiar os nazis.

Hoje, quando vemos imagens dos discursos de Hitler, ele parece-nos quase grotesco. Porque é que os alemães confiaram nele?
 

No início da década de 1930 discursar em público, diretamente, numa reunião de massas, era a forma mais efetiva de conquistar apoio público. A taxa de desemprego andava nos 35%, os negócios e os bancos estavam a implodir, e os políticos burgueses e sociais-democratas eram frouxos e pouco entusiasmantes. Hitler oferecia às pessoas a esperança de um futuro melhor, e a força da sua retórica, difícil hoje de imaginar, levou-as a segui-lo.
 

Essa retórica incendiária apelava a pessoas de todas as classes ou só às camadas sociais mais baixas?

As camadas mais baixas da sociedade, os operários e os desempregados, votavam nos comunistas, que também prometiam varrer o mundo velho e fracassado, e construir um novo. Os nazis eram apelativos sobretudo para as classes médias protestantes tanto no campo como na cidade, para os jovens, para os que votavam pela primeira vez, e para as mulheres, embora, em certa medida, tenham obtido apoio de todos os quadrantes sociais. É importante recordar, no entanto, que nunca obtiveram mais de 37,4 por cento dos votos numa eleição livre. Todos os partidos do centro colapsaram, e os outros – católicos, socialistas, comunistas – foram incapazes ou não quiseram impedi-los.
Escreveu que tanto Göring como Himmler, que eram homens das classes mais altas, ficaram «sob o feitiço de Hitler».

De que era feito esse feitiço? 

A avaliar por relatórios da época, eles foram arrastados pela força da sua retórica e pelo seu magnetismo pessoal, a que se pode com justiça chamar carisma. Mas atenção: nem Göring nem Himmler eram das classes mais altas. Como muitos jovens a seguir à Primeira Guerra Mundial, eles estavam à deriva, incapazes de assentar. Hitler deu-lhes um propósito, uma identidade como parte de um movimento, uma causa pela qual valia a pena lutar.
 

De modo a entender como e por que os nazis ascenderam ao poder é útil para o historiador sentir o poder de sedução que a personalidade de Hitler e a sua ideologia exerciam?
 

Aconselho a ver um filme como O Triunfo da Vontade, porque ajuda a aferir a natureza dessa atração. Mas o mais importante é compreender a gigantesca crise que a Alemanha estava a atravessar, em termos económicos, sociais e políticos, no início da década de 1930.

Os desfiles, os estandartes, a encenação dos comícios e a ‘estetização da política’ desempenharam um papel importante na ascensão do movimento nazi?
 

Tudo isso dava às pessoas uma sensação muito forte de atividade organizada e com um propósito. As marchas das colunas de forças especiais tiveram uma importância imensa a convencer as pessoas de que os nazis tinham determinação e iam cumprir os seus compromissos.

Parece revelador que algumas das primeiras medidas dos nazis se tenham dirigido contra aquilo a que chamavam ‘bolchevismo cultural’. Na sua opinião, por que atribuíam eles tanta importância à vida cultural? 
 

Por ‘bolchevismo cultural’ os nazis designavam a arte e música modernista. Hitler interessava-se pessoalmente por estas coisas – ele tinha tentado ingressar na Academia de Artes de Viena antes de 1914 e foi rejeitado, e tentava sobreviver pintando postais e coisas do género. Odiava a arte moderna porque esses pintores, achava ele, estavam a enriquecer e a ficar famosos à custa de fazerem borrões, enquanto as suas pinturas meticulosamente fieis de edifícios não o levavam a lado nenhum. As suas objeções eram tanto estéticas como políticas, uma vez que muitos artistas eram pacifistas ou socialistas. Ele queria que a arte veiculasse o que ele via como valores germânicos.
 

É referido muitas vezes que a indiferença do povo alemão deu uma espécie de cheque em branco aos nazis. Não é injusto fazer esse tipo de juízo a posteriori, à luz do que sabemos hoje?
 

Para a maioria dos alemães, o Governo de Hitler em 1933 ia ser apenas mais um Executivo de curta duração, que cairia ao fim de alguns meses. Governar por decreto já era uma prática muito comum antes de Hitler se tornar chanceler. A violência andava à solta nas ruas, muita dela provocada pelos nazis, que prometiam restaurar a ordem. Passaram o antissemitismo para segundo plano e muitas pessoas pensaram que se tornariam menos violentos quando chegassem ao poder. Prometeram tornar a Alemanha grande de novo depois de as humilhações de Weimar e as pessoas acreditaram neles, embora não quisessem entrar em guerra para atingir esse objetivo.
 

Além das leituras, as viagens e estadias na Alemanha foram importantes para si para compreender a mentalidade alemã ou certos aspetos da vida na Alemanha?
 

Aprendi a língua e fiz muitos amigos alemães, e ter vivido na Alemanha no final da década de 1970 ajudou-me certamente a perceber melhor os seus hábitos, conduta e crenças. Achei a vida lá fascinante e muito agradável.
 

Acha que as democracias ocidentais estão atualmente em risco? De onde lhe parece vir a maior ameaça?

Sim, a democracia está ameaçada por populistas sem escrúpulos, aspirantes a ditadores e políticos traiçoeiros com slogans simples que agradam aos simples de espírito. Se bem que não existe a violência e o militarismo nas ruas como havia na Alemanha no início da década de 1930, a internet e as redes sociais minaram a confiança na democracia representativa, nos governos, na ciência, nos especialistas e muito mais. O preconceito racial e especialmente anti-imigrantes campeia. Políticos irresponsáveis estão a rejeitar a estrutura das instituições internacionais que sustentaram a ordem mundial e garantiram a paz e a prosperidade do pós-guerra. A crise económica e a austeridade desde 2008 minaram a estabilidade política. Populistas com soluções simples mas que não funcionam, e frequentemente desastrosas, colocam uma enorme ameaça à sociedade, como estamos a ver com o Brexit.

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