expresso.ptexpresso.pt - 22 jul. 13:42

“Parece David contra Golias.” A reportagem entre quem tenta travar o furo de gás na Balouca

“Parece David contra Golias.” A reportagem entre quem tenta travar o furo de gás na Balouca

A ocupação do terreno na Bajouca, freguesia de Leiria, onde uma empresa australiana quer fazer um furo de prospeção de gás, foi preparada com antecedência e minúcia. Houve ativistas portugueses a participar em ações do género no estrangeiro, para aprender, e ativistas de outros países a dar aconselhamento técnico, logístico e legal aos de cá. A população participou e promete não parar de lutar. “Não posso morrer a pensar que não fiz nada para mudar o planeta e que as minhas filhas é que vão ser prejudicadas”

De repente, e chegando a um cruzamento, uma parte da fila separa-se e segue por uma estrada diferente. Fazemos o mesmo. Durante algum tempo, ainda conseguimos ouvir as vozes e os cânticos da manifestação, “não à prospeção, furo não”, e os tambores a marcar o ritmo. Afinal não nos afastámos assim tanto, estão quase aqui ao lado, pensamos, mas ao fim de algum tempo já só ouvimos o barulho dos paus a estalar sob os nossos pés. Para onde é que estamos a ir, afinal? Os que caminham mais atrás dizem não saber, respondem de forma evasiva ou não respondem de todo, mas há um dos ativistas que, enchendo-se de comiseração, ou percebendo que não haveria forma de manter o segredo durante muito mais tempo, desmonta a trama. “Sim, estamos a dirigir-nos para o terreno da Australis e somos um dos grupo que vai ocupá-lo.” Nos braços, todos têm escrito um número. “É o número do nosso advogado.“

A ocupação do terreno, na freguesia da Bajouca (concelho de Leiria), onde a empresa australiana Australis Oil & Gas pretende fazer um furo de prospeção de gás natural — um dos primeiros dos oito que a empresa tem contratualizados com o Estado português — fora anunciada aos órgãos de comunicação social durante a semana. Aconteceu no passado sábado.

“Vamos ocupar os terrenos que a empresa já adquiriu para fazer a prospeção”, afirmou ao Expresso, na quarta-feira, João Costa, porta-voz da iniciativa “Camp-in-Gás”, acampamento de ação contra gás fóssil e pela justiça climática. As tendas foram montadas na quarta-feira e no domingo vão ser desmontadas. O programa incluía oficinas, workshops, sessões de yoga e meditação, formações e debates, sendo muitas destas atividades realizadas por membros da comunidade local, “preocupada com a possibilidade de se abrir um furo de prospeção ao pé das suas casas”, dizia também João Costa. E, de certo modo, tinha razão.

“Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?”

Já passam das 9h30, hora a que os ativistas acampados deveriam chegar ao centro da freguesia, mas ninguém parece ter pressa. Há pessoas a chegar e ainda são muitas as cadeiras livres na esplanada do café do largo. Um grupo de quatro pessoas mantém-se parado, olhando em volta com curiosidade, à espera, mas só uma quer falar. “Porque aqui estou? Porque acho que uma exploração destas não é boa para a nossa zona”, começa por dizer Alcino Pedrosa, de 37 anos, oleiro na Bajouca. O terreno que Australis Oil & Gas adquiriu — comprou-o ao dono de um supermercado na freguesia — tem 6,8 hectares e fica a “200 metros” de algumas habitações (explicou João Costa na conversa tida durante a semana). “Se querem explorar gás, não venham para cá, há outros lugares para o fazer que não no meio da população e das nossas terras”, diz ainda Alcino Pedrosa, a quem choca o facto do “Estado português ter assinado um contrato e a população nem sequer ter sido ouvida”. “Talvez assim, com uma manifestação destas, sejamos ouvidos. Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?”.

“Há tanto terreno abandonado por onde ninguém passa, podiam fazer lá e não aqui, no meio de uma aldeia. A empresa tem falado em benefícios para a terra, mas são mínimos. Isso não justifica o que pretendem fazer”, diz Alcino Pedrosa, recordando a sessão de esclarecimentos que a empresa australiana organizou no dia 29 de janeiro, no salão da ABAD (Associação Bajouquense para o Desenvolvimento) e em que Ian Lusted, o diretor-geral da Australis, esteve presente. “Entraram a dizer que era tudo muito bom, que a exploração de gás só iria trazer benefícios, mas as pessoas leem notícias e pesquisam na Internet e sabem que não é assim tão bom como dizem”, continua.

A uns metros, outro grupo está à conversa enquanto, atrás, uma bola vai sendo chutada contra a rede que delimita o campo de futebol. Arsénio Gomes, 46 anos e ladrilhador, e Jairo Dias, 34 anos e técnico de manutenção, também estiveram presentes na sessão de esclarecimentos da Australis Oil & Gas. “Eles passam a vida a contradizer-se. O Ian Luster trazia o tema bem estudado mas quando se pedia mais informação, ele não abria a boca. Só dizia que era tudo muito bom, que era um espectáculo. Até prometeu abastecer a freguesia de água no caso de alguma coisa correr mal e houver uma contaminação, mas nós não queremos a água dele para nada. Queremos viver em paz na nossa terra”, diz Arsénio Gomes. Jairo Dias aproveita a deixa, e conta a rir: “Ele passou quatro horas a dizer que não havia risco. Ao fim dessas horas, lá admitiu que havia um risco mínimo, e as pessoas levantaram-se e bateram palmas.”

— Ele achava que isto era a Austrália e que as pessoas às onze iam para a cama, mas correu-lhe mal porque às duas da manhã ainda estávamos lá todos.

— A tradutora que lá estava às vezes nem traduzia exatamente o que ele dizia, quer dizer, traduzia, mas atenuava, para a população não ficar furiosa — continua Jairo.

— Não temos nada contra ele. É bem-vindo para beber café, e até já lhe disse que pode vir comer com a gente, agora furar é que não. Que esqueça!

A reunião do dia 29 de janeiro não terminou bem, alguém furou os pneus dos dois carros em que a equipa da Australis tinha chegado a Bajouca, conforme noticiou o “Jornal de Leiria”. Mas Arsénio Gomes não contém a piada: “Oh, se calhar foram eles próprios, não? Eles é que são especialistas em furos, não nós”. logo depois, consciente de si. “A gente tem de se rir um bocado”. Nem um nem outro compreendem a decisão do Estado português de assinar um contrato para exploração de combustíveis fósseis, quando a União Europeia se comprometeu a reduzir as emissões de dióxido de carbono em 40% até 2030 e ser neutra em carbono em 2050, e quando as metas do atual Governo ainda são mais ambiciosas do que essas. “Há muita má fé aqui. E quem supostamente deveria defender os nossos direitos, que é o governo, não está a fazê-lo. Basta ver o que está a acontecer com o Pinhal de Leiria, já aqui ao lado. O Governo prometeu reflorestá-lo mas ainda não fez nada”.

Jairo Dias vive a 500 metros do terreno adquirido pela empresa australiano e, por isso, tem preocupações redobradas. “Os riscos ambientais são enormes, os gastos com água vão ser enormes, os poços ali à volta, de onde se retira água para consumo e para a agricultura, podem ficar contaminados.”

O contrato da Australis com o Estado foi suspenso para a realização do estudo de impacto ambiental, que determinará se o furo de prospeção avança ou não. Arsénio Gomes quase aposta a vida num parecer positivo, mas isso não significa, pelo menos para si, que o furo seja feito. “Vamos fazer frente a quem vier para aqui furar. Se vai resultar? Não faço ideia, mas vamos lutar até ao fim. Se quiserem fazer o furo vão ter de nos remover de lá. Se nos quiserem calar, vão ter de nos mandar para Guatánamo”. Fala sobre as filhas, pensa nas filhas, “que não merecem o planeta que vamos deixar-lhes”.

Do largo para a divisão das filas

Os ativistas chegam finalmente ao largo. Não conseguimos contá-los, mas aparentam ultrapassar a centena. Vêm a cantar, dançar, uns tocam tambor, outros erguem bandeiras, cartazes, faixas e quase todos trazem uma planta na mão. Eis uma pequena lista não definitiva das mensagens que ali se leem: “Justiça climática já”, “Os nossos valores estão na natureza”, “Gás nem na Bajouca nem em lado nenhum”, “O gás não traz paz.” Há sobretudo jovens, uns, aliás, muito jovens, surpreendentemente jovens, mas também pessoas mais velhas. Sofia Alves está, claramente, entre os primeiros. Tem 15 anos e veio de Sintra para a Bajouca na segunda-feira para ajudar a montar o acampamento, uma decisão que, conhecendo o seu percurso, tomaríamos como previsível. Participou nas duas greve climáticas que se realizaram em Portugal e no mundo, a 15 de março e a 24 de maio.

“Os meus pais vivem numa comunidade ambientalista, estamos perto de uma quinta biológica. Somos assim para o ecofreaks, por assim dizer. Portanto, há vários anos que as questões ambientais me preocupam, mas também é importante consciencializar os outros. É por isso que estou aqui”. Essa consciência, diz, em parte já existe, “sobretudo entre as novas gerações, graças à partilha facilitada pelas redes sociais”, mas é preciso fazer mais. No caso desta manifestação, o objetivo é claro: “Não ter quaisquer furos, porque a partir do momento em que eles são abertos, é muito mais difícil fechá-los”.

No acampamento estiveram presentes ativistas de outros países que já participaram em várias manifestações e ações de desobediência civil como a ocupação de terrenos privados planeada. Sofia Alves começou por fugir às questões sobre a ocupação que se seguiria do terreno da Australis. “Pensava que era segredo. Mas é verdade, aprendemos sobre técnicas de manifestações e tivemos briefings legais. Estamos todos conscientes dos riscos que estamos a correr e sabemos que podemos ser detidos e levados para a esquadra”. Nada que a preocupe muito, na verdade. “Sim, vou participar na ocupação, o meu pai também está cá e, embora não vá entrar, concordou que eu o fizesse”.

Entendido o destino da fila que se separara da manifestação principal, e que continuava a seguir pelo mato, restava saber como planeavam entrar num terreno, previsivelmente vedado. A dada altura, e enquanto descemos por um caminho, estreito, a desembocar numa estrada, surge um carro da polícia. De imediato, o grupo pára com os ativistas a cruzar os braços acima da cabeça. O carro segue mas aí percebemos que o grupo comunica por sinais — há um sinal para virar à esquerda, outro para a direita, outro para avisar sobre as silvas que se prendem na roupa, e outro ainda para juntar o grupo, que durante o percurso começa naturalmente a desunir-se.

São poucas as conversas e quando se fala é em voz baixa. A missão é clara e foi preparada minuciosamente durante dias e dias, nada mais importa. Pede-se a dado momento aos ativistas que vistam o fato branco com um logotipo a dizer “Camp-in-Gas” que transportavam nas mochilas. “São um símbolo da ação climática europeia. Foram usados pela primeira vez no Ende Gelände, até por razões higiénicas porque os protestos ocorreram numa mina”. O Ende Gelände foi um grande movimento desobediência civil que juntou milhares de ativistas na Alemanha, em protesto contra a utilização de combustíveis fósseis. É uma referência por aqui e praticamente não há quem não mencione o movimento nas conversas. Uma inspiração também, sem dúvida. “No nosso caso, tem mais que ver com identidade e empoderamento”, explica Maria Guedes, que tem 24 anos e faz parte do Climáximo.

“Contávamos com mais mobilização da população, mas também entendemos os receios”

Às 12h05, é dado ao sinal ao grupo para parar, seguem-se instruções em português e em espanhol — estamos quase a chegar ao terreno da Australis e a mensagem mais importante é mesmo para que ninguém corra.. À chegada, veem-se outros ativistas já no terreno (a manifestação dividiu-se durante o percurso para que houvesse três grupos a entrar por diferentes lados, para “desviar as atenções da polícia”, conforme nos explicariam mais tarde) e são 12h17 quando o grupo começa a entrar, encolhendo-se entre os dois arames da vedação. Ouvem-se aplausos e nem há polícia por perto.

Sentado na berma da estrada ao lado do terreno, João Costa, o porta-voz da iniciativa, faz uma espécie de balanço. “Na verdade, contávamos com mais mobilização da população, mas também entendemos os receios. Há muita gente reticente, com a empresa mas também connosco, que vimos de fora”. Segundo números da organização, participaram na manifestação cerca de 400 pessoas, entre ativistas e habitantes da Bajouca e freguesias vizinhas. João Costa explica que o acampamento estava a ser preparado desde janeiro e a ocupação do terreno há pelo menos quatro meses. E esclarece assim todo o secretismo em torno da ocupação. “90% dos manifestantes só na sexta soube o que iríamos fazer e, desses, apenas 30% estavam a par de tudo. É uma questão de proteção, de precaver infiltrados.”

Mariana Violante tem 32 anos e vive em Leiria. É a primeira vez que participa numa manifestação pelo clima, a sua atenção tem estado centrada nos direitos humanos (trabalha numa ONG nessa área), mas não vê como ambos possam ser dissociados. “O que mais me move é mesmo a justiça climática. Na Europa e outros países dito desenvolvidos existem mecanismos para resistir a intempéries e mudanças climáticas drásticas mas noutros países, muito sujeitos à extração de todo o tipo de materiais que nós aqui usamos, não”.

O “importante”, diz, é “garantir que são feitos todos os esforços para que as políticas públicas, subsídios e investigação deixem de estar virados para a exploração deste tipo de energias”. Se esta e outras manifestações e ações do género serão suficientes para mudar isso? Obviamente não sabe, mas acredita que a mobilização “é a única forma de fazer os decisores voltar atrás e sentirem-se legitimados para quebrar contratos”. “Ou as empresas desistem porque estamos aqui ou o governo sente pressão da população e renegoceia”. “É um long shot, eu sei, uma cadeia que mais parece David contra Golias, mas há histórias que mostram que é possível.”

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