expresso.ptexpresso.pt - 22 jul. 14:52

O parente pobre da Europa em ensaios clínicos

O parente pobre da Europa em ensaios clínicos

Cancro: Portugal tem centros de investigação de topo. Mas, por falta de organização e estratégia, continua na cauda europeia

Susana Neto é uma das doentes oncológicas que participa em ensaios clínicos no IPO do Porto. Submeteu-se aos testes quando, em 2017, em silêncio e de coração apertado, recebeu a notícia que mais receava — “cancro da mama triplo negativo” — para o qual, informou-a o médico, ainda não existia medicação específica. Dois anos depois, recorda o momento: “Só tinha como hipótese de tratamento a quimioterapia. Se falhasse, não teria outra alternativa. Logo, o benefício de submeter-me ao ensaio seria sempre superior a eventuais prejuízos. Iria pesar-me muito mais o facto de poder vir a morrer e não ter tentado tudo para me salvar.” Susana fala da experiência com uma pontinha de orgulho por estar a contribuir para um trabalho de alcance tão vasto.

Sem testar em doentes, os conhecimentos adquiridos em laboratório e nas primeiras fases da investigação, dificilmente se chegaria à descoberta de novos medicamentos e à cura das doenças. Por norma, estes ensaios clínicos demoram muito tempo e são duplamente cegos, isto é, os doentes desconhecem se estão ou não a receber a nova terapêutica.

Falta estratégia nacional
Os ensaios clínicos têm vindo a aumentar todos os anos em Portugal, mas os números poderiam ser melhores. Em 2018, o Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde) recebeu 159 pedidos, tendo autorizado 141, mais 16% face ao ano anterior. Terão participado entre 2300 e 2500 doentes. O IPO do Porto, um dos mais avançados nesta matéria, iniciou 32 ensaios em 2017, e 15 no ano passado. Apesar de as estimativas para 2019 serem mais otimistas, a verdade é que Portugal continua aquém de países com uma dimensão idêntica, como a Bélgica (ver gráfico).

Médicos e cientistas ligados à investigação são unânimes — Portugal tem recursos humanos e técnicos comparáveis aos países mais desenvolvidos e não sai da cauda da Europa por questões de organização e de relação entre serviços e ministérios. Carla Oliveira, investigadora especialista em cancro gástrico do Ipatimup — I3S, e membro da Comissão Executiva da Sociedade Europeia de Genética Humana, dá-nos uma visão privilegiada do estado da investigação oncológica: “Hoje, ao contrário do que acontecia nos anos 90, temos em Portugal laboratórios com as mesmas condições que encontramos lá fora. Não há falta de pessoas a querer estudar o cancro. Fazemos ciência de boa qualidade. O que falta é uma estratégia nacional que permita aos investigadores dedicarem-se em pleno ao seu trabalho e manterem-se competitivos na investigação.”

Oncologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, professor na Faculdade de Medicina de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa Investigação do cancro (ASPIC), Luís Costa concorda que “esta nova geração de médicos e cientistas, está mais preparada” e poderia elevar o nível de investigação para outros patamares, se não fosse travada por problemas administrativos. E dá o exemplo da falta de reconhecimento oficial de algumas profissões que, na área clínica, são hoje fundamentais à investigação: “Devemos saber que esta é a melhor forma que nós temos, enquanto sociedade, de fazer avançar a ciência.”

José Dinis, o eecém-nomeado diretor do Programa Nacional de Doenças Oncológicas e responsável pela Unidade de Investigação Clínica do IPO do Porto, aponta também a falta de estruturas e de autonomia das organizações para que possam gerir de forma própria os projetos e as verbas que captam da indústria farmacêutica. “Há ensaios clínicos aos quais não podemos nos candidatar porque sabemos que não vamos conseguir responder. Alocar recursos aos projetos pode demorar muito tempo.” A contratação de pessoal, incluindo médicos que possam dedicar mais tempo ao acompanhamento dos ensaios, está dependente do Ministério da Saúde. “Há centros que gostariam de fazer investigação clínica, mas não o fazem por falta de equipa”, acrescenta Luís Costa.

Na opinião de Júlio Oliveira, médico oncologista no IPO do Porto, a questão da investigação e dos ensaios clínicos é fundamental: “É um trabalho em que todos devem estar envolvidos, dos médicos às associações de doentes.” E defende que “Portugal devia ter a capacidade de fazer investigação sem que esta coincida com os interesses de empresas privadas internacionais”. A realidade, porém, é diferente: cerca de 90% dos ensaios clínicos feitos no país destinam-se a testar novos produtos da indústria farmacêutica; apenas 10% são académicos.

Os exemplos de Espanha e do Reino Unido
Entre a investigação básica (aquela que se faz nos laboratórios) e a investigação clínica (aquela que se faz nos hospitais) existe a investigação de translação, etapa que igualmente precisa de novas estruturas e meios. “A investigação de translação é a tentativa de transformar o conhecimento adquirido na investigação básica para a aplicação clínica”, refere Fátima Carneiro, diretora do serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João. A patologista realça a seguir o facto de, na investigação de translação, Portugal ser líder, sobretudo, ao nível do carcinoma da próstata e cancro de estômago. Temos “talento ao nível da investigação do cancro”, mas precisamos de “melhorar as infraestruturas e as interligações entre as mesmas”.

José Dinis toca em outro ponto: “A indústria vê-nos como sendo ibéricos.” E, por isso, coloca os hospitais portugueses a competir em pé de igualdade com os hospitais espanhóis. “Mas, como o nível de organização deles é muito superior, Portugal fica para trás.” O plano que Espanha implementou em 2005 e 2006 é, reconhece, “um dos maiores sucessos a nível europeu nesta área”. O caso de Inglaterra serve também de exemplo. “Em 2006 os ingleses estavam iguais a nós no que diz respeito à investigação clínica”, recorda José Dinis: “Eles perceberam que a investigação é uma forma de alavancar a participação dos doentes e o próprio sistema nacional de saúde. Nós devíamos fazer o mesmo.”

Em 2017, os ensaios clínicos contribuíram em €1400 milhões para o sistema de saúde inglês. Em Espanha, as receitas provenientes e canalizadas para o sector público totalizaram €1100 milhões. Ou seja, os ensaios podem ser importantes fontes de receitas. Segundo o último estudo da Apifarma (Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica), desenvolvido com a consultora PwC, cada euro investido em ensaios clínicos gera um retorno de €1,99 na economia. Sugere Júlio Oliveira: “A atividade de ensaios clínicos podia até ser coordenada pelos Ministério da Economia. Apresenta grandes benefícios para o país e pode atrair investimento.”

Retificação

A legislação e os doentes A reportagem sobre os direitos dos doentes oncológicos, publicada neste espaço no passado dia 1 de junho, merece uma correção. Cristina Filipe Nogueira foi apresentada como advogada, quando, na prática, já não exercia essas funções. O texto referia ainda que a administradora judicial — vítima de cancro da mama — tinha sido notificada a pagar €116 mil pela Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ), na sequência de atrasos em processos. Este regime e penalização foi entretanto alterado, com os profissionais de doenças graves a passarem a ter direito a seis meses de baixa, prorrogável por outros seis meses. A medida entrará em vigor em 2021.

Textos originalmente publicados no Expresso de 20 de julho de 2019

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