observador.ptTomas Roquette Tenreiro - 21 jul. 00:52

“The Wizard and the Prophet”: conservar ou modernizar?

“The Wizard and the Prophet”: conservar ou modernizar?

É o confronto de duas perspectivas - a optimista e a pessimista - sobre como salvar o nosso planeta. A visão de feiticeiros e profetas através da história de dois deles, Norman Borlaug e William Vogt.

Com os supostos partidos “verdes” a ocupar cerca de 10% dos lugares no Parlamento Europeu (e com perspectivas de crescimento) é relevante perguntar o que temos realmente à nossa frente; quais são as implicações futuras das ideologias que tantos abraçam e que invadem não apenas o espaço de discussão política mas também a esfera da liberdade individual e da iniciativa privada?

Como ponto de orientação para discutir este tema, parece-me particularmente interessante destacar o livro do autor Charles C. Mann (escritor norte americano ligado à National Geographic, Science Mag, The Washington Post, New York Times) – “The Wizard and the Prophet”. O recente livro (publicado em 2018) destaca duas correntes que marcaram fortemente a história do século XX e que estão hoje tão vivas como há 60-70 anos atrás.

No lado direito da mesa sentam-se os “Wizards”, no lado esquerdo os “Prophets”. Partilham mesa mas trocam poucos olhares. Enaltecem os seus espíritos democráticos mas pouco ou nada falam entre si. Sentam-se juntos à mesma mesa mas o ambiente é de cortar à faca. As propostas de uns são inevitavelmente as críticas dos outros. O optimismo de uns é o pessimismo apocalíptico dos outros. Uns acreditam que a solução está parcialmente no Homem, outros alegam que o Homem é o problema.

Os “feiticeiros” personificados na pessoa de Norman Borlaug, vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1970 e honrado com o prémio “Padma Vibhushan” na Índia em 2006 (três anos antes da sua morte). Os profetas representados por William Vogt, conhecido como um dos grandes promotores das correntes ambientalistas modernas, marcadas pelo bio- e ecocentrismo e por um discurso apocalíptico que hoje marca o passo das nossas ‘democracias’. Por um lado, o tecno-optimismo de quem foi capaz de salvar a vida de mais de mil milhões de pessoas durante a segunda metade do século XX, através do melhoramento dos principais cereais que garantiram a disponibilidade alimentar necessária às zonas mais deficitárias (muitos argumentam que se trata provavelmente da obra que mais vidas salvou na história da Humanidade, algo equivalente a um 72% da população actual da China). Por outro lado, uma vida entregue às ideias e às palavras, marcada por argumentos revolucionários que não salvam vidas (nem sequer as dos pássaros marinhos na costa do Pacífico no Peru aos quais dedicou uma parte considerável da sua vida).

À esquerda Norman Borlaug, à direita William Vogt

De uma forma geral, é possível compreender a relativa inclinação do autor para muitas das ideias que derivam do ‘Vogtianismo’, caracterizado por posições pouco científicas na medida em que partem de abordagens não metódicas ou reprodutíveis, fortemente ‘biased’ e claramente condicionadas por heranças ideológicas que ultrapassam a pessoa de William Vogt (e.g. Voltaire e Rousseau, William Godwin, Nicolas de Condorcet e Paul Ehrlich). No entanto, o nível de imparcialidade na discussão que proporciona a história contada sobre estes dois homens é satisfatório para um escritor do New York Times. Nesse sentido o livro permite-nos uma leitura interessante da realidade que enfrentamos.

Em teoria, profetas e feiticeiros (i.e. ‘prophets and wizards’) não deveriam ser entendidos como duas diferentes categorias, mas sim com partes opostas de um contínuo no qual poderiam e deveriam encontrar-se a meio. Primeiro porque o Homem é na sua condição de existência limitado, segundo porque o biocentrismo para a racionalidade Humana conduz a uma abstracção incapaz de ser cumprida pela nossa espécie. Reverter a bipolarização existente entre ambos requer compreender que é no meio que o Homem poderá encontrar a coerência necessária para a sustentabilidade que procura.

O ‘ambientalismo de Vogt’ instalou-se no parlamento Europeu; mas quem foi William Vogt na verdade?

William Vogt nasce em 1902 na localidade de Mineola (EUA) e cresce no ambiente urbano de Nova Iorque onde desperta um grande interesse pela observação de pássaros durante horas a fio no famoso Central Park da cidade. Forma-se em 1925 pela faculdade de ‘St. Stephens’ (hoje ‘Bard College’) em literatura e dedica-se durante as primeiras décadas da sua vida ao teatro, à escrita e à biologia teórica (tendo mais tarde Aldo Leopold como mentor, um dos responsáveis pelo início da disciplina de Ecologia em Yale em 1905 a partir da qual se desenvolve a corrente ecocêntrica). Torna-se um homem relativamente solitário e pouco sociável. No entanto, a figura urbana e artística de Vogt rapidamente se interessa por questões de carácter “ecológico” procurando preencher o vazio interior que a cidade cria com “aventuras” nos jardins do Central Park ou nos pequenos espaços verdes distribuídos entre Bronx e Brooklyn. No fundo, o “ambientalismo moderno” personificado na pessoa de Vogt nasce, igual que ele, rodeado de betão e alcatrão.

Vogt acaba sendo escolhido para estudar alterações nos padrões do fenômeno do ‘El Niño’ na costa do Pacífico no Peru, visando a conservação de espécies de aves marinhas responsáveis pela produção de guano. À época o guano era muito valorizado enquanto fonte de nutrientes para a agricultura (alto teor em azoto e fósforo), vindo depois a perder importância com o avanço da produção industrial de fertilizantes azotados permitida pelos trabalhos de Fritz Haber e Carl Bosch (também eles prémios Nobel, também eles wizards). Note-se como já no início do século XX, com níveis de industrialização absolutamente inferiores aos actuais, já “Vogtians” tentavam mitigar “alterações do clima”, “salvar espécies” e abordar as sociedades segundo visões ‘cut-back’ e ‘stop-growth’, cujos mecanismos intervencionistas se limitavam ao excesso de regulamentação legal e ao condicionamento da liberdade do Homem em prol do seu entendimento ecologista. Note-se que a atitude ‘Vogtiana’ é na generalidade marcada por uma postura revolucionária, essencialmente contra-poder. Ser contra-poder não chega. Limita-nos à crítica destrutiva, à teoria não aplicada, à abstracção. É nessa esfera que coexistem frequentemente Marxismos e ‘Vogtianismos’, aparentando distintas formas mas feitos de semelhante matéria.

As correntes Vogtianas escrevem… escrevem muita coisa mas não necessariamente positiva. Três dos seus maiores clássicos são “The Road to Survival” em 1948 por Vogt, um dos primeiros livros ao estilo “we are all going to hell”, “The Population Bomb” em 1968 por Paul Ehrlich, e “The Limits to Growth” escrito em 1972 por um conjunto de engenheiros informáticos. Informáticos que, à semelhança da bióloga Lynn Margulis, identificavam na lei de Georgy Gause (ou princípio da exclusão competitiva), entendida à escala de uma caixa de petri com espécies de protozoários, lições representativas para a Humanidade, deixando de parte todas as possibilidades que o avanço tecnológico conduzido por ‘wizards’ permite ao ajuste de limites que nos confinam enquanto espécie. Note-se que as correntes ambientalistas de carácter biocêntrico a que tantos concedem o seu voto, partem de premissas que colocam o Homem ao nível de organismos procariontes na batalha pela sobrevivência. Hoje são diversos os exemplos em que o Homem legisla sobre supostos direitos de outras espécies num plano que acaba sobrepondo-se ao seu. Abordagens biocêntricas que reduzem o Homem ao nível de outras espécies, quando não o relegam para um plano marginal da vida. Abordagens que marcam hoje muito do que é a agenda desses 10% Verdes nos nossos palcos políticos.

No outro lado da mesa senta-se Norman Borlaug. Agricultor, com formação em agronomia e engenharia florestal, homem de formação científica e profundamente capaz de abordar questões muito concretas com uma atitude construtiva. Norman Borlaug nasceu em 1914. Descendente de uma primeira geração de migrantes nórdicos que chega aos Estados Unidos durante o século XIX. Gente profundamente marcada por uma “inteligência pró-activa” que sentiu na pele os custos de quem tudo perdeu, os custos da fome causada pelo colapso agrícola das regiões de onde partiram. Os Borlaug (de nome original Dybvigs) chegam aos Estados Unidos para viver como migrantes durante várias gerações, tendo recorrentemente que recomeçar do zero. A comunidade migratória à qual pertencem está naquela época maioritariamente dividida entre noruegueses e checos. As relações entre ambos são amigáveis mas distantes. Uns são Protestantes Luteranos, os outros são Católicos Romanos. Os primeiros desde cedo destacaram-se pelo trabalho e pela consequente acumulação de riqueza (aumentando as suas propriedades), os segundos conhecidos por “boémios” dedicaram mais tempo às festividades religiosas e aos acontecimentos sociais perdendo em parte o “comboio local do progresso”.

Chegando a Iowa em 1862 é na terra que os Borlaug encontram a mais concreta oportunidade de servir. Norman começa desde cedo a trabalhar na pequena exploração agrícola da família. Cresce conhecendo de perto as consequências negativas de solos pouco drenados, de culturas duramente afectadas pelo constante ataque de fungos de que é exemplo a temível espécie Puccinia graminis (ferrugem dos cereais). A fome que resulta da falta de soluções tecnológicas para lidar com tais problemas toca muito directamente a sua realidade familiar. Só em 1877 a comunidade norueguesa a que pertencem realiza mais de 30 funerais (o equivalente a 10% da sua população) devido à fome, o que define desde cedo na cabeça dos Borlaug que a necessidade de modernizar é uma questão determinante para a sobrevivência do Homem.

Norman Borlaug pode ser entendido como um apóstolo da ciência e da engenharia. A sua convicção de que a lógica, o conhecimento e o trabalho árduo compensam é um exemplo claro de que o caminho que ignora estes três elementos está condenado ao fracasso. A vida de Borlaug ganha particular relevância quando inicia um percurso profissional no âmbito do Plano Agrícola Mexicano (PAM) em conjunto com a Universidade Autónoma de Chapingo (no México), tendo colaborado durante várias décadas com diversas organizações como a ‘Rockefeller Foundation’, o departamento da agricultura dos Estados Unidos (USDA) e a famosa multinacional ‘DuPont’. Após vários anos de extremas dificuldades Borlaug conduz a Humanidade ao que em 1957 ficou conhecido como o princípio da “Revolução Verde”. Um ‘verde’ que resulta da agricultura, do campo, da vida de alguém que sempre levou terra agarrada às botas, da clorofila que nos permite produzir para comer (para viver); não esse “verde acinzentado” que hoje ocupa 10% do Parlamento Europeu e que à semelhança de William Vogt é mais feito de betão que de plantas.

A revolução verde originou crescimento. Primeiro o crescimento das produções de trigo e depois o crescimento das populações. Muitos levantaram argumentos contra tais consequências. Os livros Vogtianos “The Population Bomb” e “The Limits to Growth” são exemplos claros disso. Muitos perguntam, até onde podemos crescer? Qual é o potencial biológico de crescimento dos nossos sistemas? De que forma podemos crescer sem perder a oportunidade de conservar?

Norman Borlaug indica-nos que o potencial é enorme. E que crescer conservando implica modernizar. Energeticamente, os sistemas fotoquímicos que nos alimentam são de uma ineficiência atroz. Os milhões de anos de evolução que nos antecedem parecem estar apenas no princípio de um caminho de melhoramento. Já o dizia Warren Weaver em 1963 (director nos anos 50-60 da divisão de “natural sciences” na Rockefeller Foundation, instituição responsável pelo financiamento de 15 dos 18 prémios Nobel em biologia molecular entre 1954 e 1965) que a eficiência geral fotossintética era à época aproximadamente 0.00025%, o que implica um extraordinário potencial de melhoria. Apesar da evolução que a engenharia genética tem permitido (inevitavelmente também ela impulsionada pela herança deixada por Borlaug), o potencial continua a ser enorme. Em 2018, o Presidente da Real Academia de Engenharia Espanhola, Elías Fereres Castiel, destacava precisamente essa questão num encontro realizado no País Basco sobre o sector energético. Os valores comunicados, ainda que claramente superiores (0.05-1%), confirmam que estamos ainda muito aquém do “potencial biológico produtivo”. Recorrendo aos valores de Warren, podemos estimar um potencial nutritivo capaz de alimentar uma população mundial até 80 mil milhões de pessoas (aproximadamente 10 vezes superior à actual). No entanto, potenciar a modernização dos sistemas fotoquímicos dos quais dependemos não é uma questão unicamente relacionada com a alimentação do Homem; o potencial que isso implica para os biocombustíveis é muito prometedor. Modernizar as dinâmicas alimentar e energética irá com certeza ser o maior exemplo de que podemos crescer conservando. Verifica-se actualmente uma aposta crescente em projectos biotecnológicos relacionados com esta questão (o projecto ‘C-4 Rice’ do ‘International Rice Research Institute’ (IRRI) é provavelmente um dos mais conhecidos na actualidade) mas é igualmente importante garantir que todos os factores complementares estarão assegurados (e.g. água, energia acessível, infra-estruturas, estabilidade social, etc.), assim como promover políticas que visem atingir esse potencial. O caminho proposto por “Vogtianos” implica voltar para trás (‘to cut-back’) às custas da nossa própria sobrevivência enquanto espécie. Enquanto uns tentam romper as barreiras da caixinha de petri, os restantes idealizam caixinhas de petri sem a presença do Homem.

O que podemos claramente destacar deste livro é que a discussão bipolarizada entre feiticeiros e profetas fica-se pelas profecias ou feitiços de cada um. No entanto, enquanto as profecias de uns proclamam “novas religiões” que ocupam o vazio deixado por outras, os feitiços dos outros permitem construir a paz assente na liberdade dos Homens e na melhoria contínua da qualidade de vida dos milhões que falam sem se fazer ouvir.

O confronto que existe entre estas duas visões não é necessariamente entre o bem e o mal, o correcto ou o errado, a verdade ou a mentira, mas sim entre duas ideias distintas sobre a vida, duas perspectivas éticas sobre a ordem social e sobre a forma de a moldar, o que nos permite compreender que se trata sim de uma batalha ideológica. As novas “campanhas verdes” (que na verdade não são novas, nem são verdes) são promessas antigas baseadas num “apocalipse prometido” que não observamos. A dimensão da fome no Mundo nos anos 70 (nas regiões da Índia, Bangladesh, Camboja e África Subsariana) tem se revertido notavelmente. Ao contrário do que defendia Ehrlich com “The Population Bomb”, estimando o fim da Humanidade para o ano de 1985 e, apesar de toda a agenda ideológica contra a modernização da agricultura, que afirma a sua sustentabilidade ao continuar aumentando os níveis de produtividade, a esperança média de vida nos EUA não caiu para os 42 anos… muito pelo contrário!

Em contrapartida, a natureza idealizada na urbe que sustenta estas ideias tem apenas contribuído para a marginalização do mundo rural e para a insustentabilidade das cidades. Os movimentos ideológicos que actualmente convidam estudantes a faltar às aulas para “salvar o clima”, criminalizam a modernização (que só existe em liberdade) e profetizam “dogmas” em nome da ciência cuja objectividade acaba sendo posta em causa (ideia abordada de forma muito interessante pelo artigo “on unconscious bias in science”, publicado em 2018 na revista online do departamento de Ecologia e Ciências do Ambiente do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, instituição associada a 21 prémios Nobel). Movimentos desse carácter acabam por centralizar o poder  artificializando ainda mais a realidade que dizem querer naturalizar. Os “novos verdes” são a cara de um paradigma que ataca por dentro e de forma muito precisa a nossa “condição evolutiva” e, consequentemente, a nossa sobrevivência enquanto espécie. ‘Cut-back’, dizem eles… ou quererão antes dizer ‘Cut-back your freedom on behalf of my interests’?

Faz falta mais engenharia na política. Mas “a política não atrai quem quer ser útil”. Sem avanço, retrocedemos. E conservar implica modernizar. Portugal, com 70% de abstenção, sabe isso! Espera apenas que surja uma corrente verdadeiramente “wizard”, capaz de pôr os pontos nos is, arregaçar as mangas à semelhança de Borlaug e mudar o caminho das coisas no sentido da modernização que não destrói mas que cria oportunidades.

No dia em que essa alternativa chegar, a política falsamente ambientalista e o vazio do contra-poder com que pactua, dedicados somente ao “jardim citadino”, serão reduzidos a uma falsa promessa.

Dois pontos finais:

  • A visão antropocêntrica que permite a modernização, não implica a exclusão de abordagens ecologistas (i.e. “shallow ecology”) já que o verdadeiro conservacionismo em diversas situações requer acções muito concretas (e.g. a caça, o pastoreio extensivo, o ecossistema do toiro bravo, a gestão activa da floresta); reconhecer na racionalidade do Homem uma condição para a sua diferenciação e domínio enquanto espécie é uma atitude no mínimo coerente com a nossa natureza comportamental (o Homem tentará sempre transcender-se apesar das suas limitações). Sem coerência não há sustentabilidade.
  • O “biocentrismo de Vogt”, que exclui o homem e fere a sua liberdade, condiciona a natureza da nossa existência ao modelo, à teorização e à incoerência. Dessa forma, os “novos ambientalistas” condenam o seu próprio discurso ao fracasso, da mesma forma que as supostas promessas “Vogtianas” ainda estão por cumprir.
NewsItem [
pubDate=2019-07-21 01:52:39.0
, url=https://observador.pt/opiniao/the-wizard-and-the-prophet-conservar-ou-modernizar/
, host=observador.pt
, wordCount=2674
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2019_07_20_1923705155_-the-wizard-and-the-prophet-conservar-ou-modernizar
, topics=[opinião, ambiente]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]