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Michael Jackson morreu há 10 anos, mas a sua tragédia é mais antiga. Antes de ser criança, foi um negócio

Michael Jackson morreu há 10 anos, mas a sua tragédia é mais antiga. Antes de ser criança, foi um negócio

Quando atuava com os irmãos em concursos, arrasava de tal forma com a concorrência que havia quem julgasse que se tratava de um anão com experiência e não de uma criança. Entre o adolescente tímido e a maior estrela pop de sempre há uma história tão gloriosa como trágica. Quando passam 10 anos sobre a sua morte, recuperamos um artigo sobre os primeiros passos de um homem que desde muito cedo foi transformado em dinheiro

Publicado originalmente na edição especial da BLITZ "Michael Jackson - Para Sempre", em junho de 2010

Terra de fábricas de aço, Gary, no Indiana, é uma das muitas localidades da cintura industrial de Chicago, cidade de que dista apenas 25 quilómetros, apesar de se situar já noutro estado. Joseph Walter Jackson, agora com 80 anos, mudou-se para Gary quando casou com Katherine Scruse (79 anos completados no passado dia 4 de Maio), para trabalhar como operador de gruas na U.S. Steel. Ele tinha 20 anos, ela 19, e na natureza deste matrimónio encontram-se algumas pistas, seguidas pelo biógrafo J. Randy Taraborrelli, para perceber virtudes e problemas do «rebento» Michael.

«Katherine disse que foi tão afetada pelo divórcio dos seus pais», escreve Taraborrelli, «e pelo facto de ter sido criada num lar desfeito que prometeu a si mesma que logo que encontrasse um marido haveria de se manter casada com ele independentemente das circunstâncias da vida». De acordo com os relatos, Joseph, antigo boxeur agora dedicado ao trabalho, não parecia dar grande trabalho à sua jovem esposa, revelando-se um marido dedicado e apaixonado. A paixão depressa trouxe frutos.

«O primeiro rebento do casal, Maureen, carinhosamente tratada por Rebbie, nasceu a 29 de Maio de 1950. Os outros descendentes seguiram-se numa rápida sucessão. A 4 de Maio de 1951, no 21º aniversário de Katherine, nasceu Sigmund Esco, alcunhado de Jackie. Dois anos mais tarde, a 15 de Outubro de 1953, Tariano Adaryl nasceu; ele era tratado por Tito. Jermaine LaJuane seguiu-se a 11 de Dezembro de 1954; LaToya Yvonne a 29 de Maio de 1956; Marlon David a 12 de Março de 1957 (um de dois gémeos prematuros; o outro, Brandon, morreu 24 horas depois do parto); Michael Joseph a 29 de Agosto de 1958 (“com uma cabeça engraçada, grandes olhos castanhos e longas mãos”, disse a sua mãe); Steven Randall a 29 de Outubro de 1961 e depois Janet Dameta a 16 de Maio de 1966», escreve-se em The Magic & The Madness.

Cinco irmãos, um negócio de família. Michael em pé, à direita

Cinco irmãos, um negócio de família. Michael em pé, à direita

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O despertar para a música

O número 2300 de Jackson Street era demasiado pequeno para tanta gente: «Podia-se dar cinco passos a partir da porta da entrada e chegava-se ao fundo da casa», disse um dia Michael. Foi aqui que o talento dos Jackson começou a ser «domado». Joseph alimentou por breves momentos a fantasia de ser uma estrela da música, com a explosão rock and roll de meados dos anos 50, e chegou mesmo a formar uma banda, os Falcons, com o seu irmão Luther. Mas o grupo não causou qualquer tipo de impacto e Joseph depressa regressou às gruas da U.S. Steel. Lá em casa, entretanto, a rádio alimentava sonhos e os irmãos mais velhos, Jackie, Tito e Jermaine depressa começaram a revelar alguma inclinação musical. O pai reparou na musicalidade dos filhos quando um dia os surpreendeu a brincarem com a sua guitarra. Inicialmente, Joseph ficou muito zangado pois tinham-lhe partido uma corda da guitarra, mas ao ouvir os três filhos a fazerem harmonias vocais, uma ideia começou a florescer na sua cabeça, regressando os sonhos e delírios de grandeza que tinha alimentado uma década antes nos Falcons.

A primeira ideia de Joseph, implementada em 1964, traduziu-se nos Jackson Brothers, com Jackie, Tito e Jermaine a serem ajudados pelos vizinhos Reynaud Jones e Milford Hite – que tocavam guitarra e bateria. Esta era a época da British Invasion e os Beatles cantavam «I Want to Hold Your Hand» ou «A Hard Day’s Night», mas a pop da Motown dava igualmente cartas através das Supremes e de êxitos avassaladores como «Baby Love». Este era o mundo onde Joseph Jackson queria deixar marca através dos seus filhos.

Em 1965, o clã Jackson deu um passo de gigante em direcção à imortalidade, quando Michael e Marlon se juntaram aos irmãos para tocar pandeireta e congas. Não demorou muito tempo para que Michael começasse a revelar especial talento. «Ele tornou-se num pequeno grande imitador», recorda Jermaine citado por Taraborrelli. «Ele via uma coisa qualquer – outro miúdo a dançar ou talvez James Brown na televisão – e de repente Michael tinha memorizado os passos e sabia exactamente o que fazer. Ele adorava dançar. O Marlon era um bom dançarino, talvez até melhor do que o Mike. Mas o Mike tinha mais paixão. Andava sempre a dançar pela casa. Apanhávamo-lo muitas vezes a dançar sozinho em frente ao espelho. Ele desaparecia sozinho para praticar e depois aparecia e mostrava-nos um novo passo. Incorporávamos esses passos no espectáculo e o Michael começou a coreografar o que fazíamos todos em palco», conclui.

Os cinco Jacksons: Michael à direita

Os cinco Jacksons: Michael à direita

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O nascimento dos Jackson Five

Foi na Roosevelt High, escola de Jackie, que Michael ganhou um concurso de talentos juntamente com os irmãos em meados de 1966, atraindo as atenções de Shirly Cartman, professora de música na escola, que imediatamente percebeu o potencial dos irmãos, especialmente de Michael. Foi ela que sugeriu que o grupo se passasse a chamar Jackson Five e que Johnny Jackson e Ronnie Rancifer – músicos experimentados que asseguravam a bateria e os teclados – substituíssem os vizinhos eleitos por Joseph. Tito passou a ser o guitarrista principal e Jermaine passou para o baixo.

A vitória no concurso de talentos deu a Joseph o argumento perfeito para começar a explorar o chamado «chitlin circuit», verdadeiro viveiro de talentos e sustento para muitas futuras estrelas da soul que tocavam nestes clubes para negros numa época em que a segregação ainda era uma realidade. As raízes para os problemas futuros de Michael também se podem encontrar já nesta época: não só a disciplina era imposta de forma férrea por Joseph Jackson, que não permitia que os filhos falhassem uma nota ou se esquecessem de um passo, como o grupo era obrigado a um calendário violento que inclusivamente os levava a tocar em clubes de strip. Charles Shaar Murray escrevia em 2003 sobre este período da carreira de Michael Jackson: «De facto, o jovem Michael era um pequeno cantor tão bizarramente dotado que, na época formativa pré-Motown, quando eles trabalhavam nos clubes e bares do “midwest” na zona mais próxima da sua cidade natal de Gary, no Indiana, artistas zangados por serem esmagados por eles nas provas de talentos convenciam-se de que o Michael não era realmente uma criança, mas um talentoso e altamente experiente anão.

Quando era pré-adolescente, ele tocou em alguns dos mais nefastos clubes e bares da América, vendo strippers das zonas laterais do palco enquanto esperava pela sua vez de subir ao palco, fazendo depois um número que incluía espreitar pelas saias das mulheres sentadas nas primeiras filas e – depois dos Jackson Five se tornarem num caso de sucesso – partilhando quartos de hotel com os irmãos mais velhos que não se coibiam de praticar sexo de forma entusiástica com a admiradoras que os seguiam depois dos concertos».

Fotografado em casa, no início dos anos 70

Fotografado em casa, no início dos anos 70

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A chegada à Motown

Foi em 1968 que os Jackson Five conseguiram a atenção da Motown. As boas performances no circuito de clubes foram-lhes permitindo conseguir espectáculos de melhor qualidade e uma temporada como cabeças de cartaz no Guys and Gals Cocktail Lounge de Chicago valeu-lhes o passaporte para o Regal Theater onde foram escalonados para abrirem para Bobby Taylor & The Vancouvers, grupo da Motown de Berry Gordy. Impressionado, Taylor organizou uma audição com Suzanne de Passe, executiva da editora de Detroit. Berry Gordy não esteve nessa audição, mas viu uma gravação em vídeo dos Jackson Five a interpretarem «I Got The Feelin’» de James Brown.

As crónicas rezam que o patrão da Motown não ficou inteiramente impressionado e que só uma segunda audição perante os rapazes, ao vivo, o fez correr a buscar o livro de cheques. O grupo já se tinha estreado no início de 1968 com «Big Boy», na pequena etiqueta Steeltown, mas Gordy, percebendo o extremo potencial do grupo, comprou o contrato e dedicou-se a fazer o melhor que sabia: a transformar este grupo num fenómeno. O seu primeiro passo foi mudar Joseph e os rapazes para a Califórnia – Joseph e os três irmãos mais velhos viveram um tempo com Gordy e os dois mais novos, Michael e Marlon, ficaram com Diana Ross. Katherine manteve-se em Gary com o resto da família.

O patrão da Motown percebeu imediatamente que a história dos irmãos precisava de alguns ajustes: não só a biografia do grupo foi «reescrita» de forma a fazer Michael parecer mais novo do que realmente era, aumentando assim o seu potencial de «cuteness», mas até a história da sua descoberta foi «moldada», tentando fazer crer que o grupo – agora renomeado ligeiramente como Jackson 5 – tinha sido descoberto por Diana Ross e Gordy num concerto beneficente organizado pelo «mayor» de Gary. O título do primeiro álbum dos Jackson 5 para a Motown – Diana Ross Presents the Jackson 5 – reforçava a cortina de fumo de marketing. A história deve ter resultado, entretanto, pois «I Want You Back», o primeiro single, ascendeu imediatamente ao primeiro lugar das tabelas de vendas.

Gordy decidiu não correr riscos com a estreia dos irmãos. Não só desviou para eles uma canção que deveria ter sido entregue a Gladys Knight como nomeou uma super-equipa – alcunhada como A Corporação – para tratar da composição e produção do reportório dos Jackson 5: o próprio Gordy, Alphonzo Mizell, Freddie Perren e Deke Richards colocaram todo o seu saber e escreveram cinco números 1 para os Jackson 5, incluindo, «ABC», «The Love You Save» e o já citado «I Want You Back», canção que a Pitchfork não teve dúvidas em classificar como a segunda melhor canção dos anos 60 e possivelmente, a melhor progressão de acordes na história da música pop».

Este «bubblegum soul» era uma fórmula altamente refinada que a linha de montagem da Motown preparava para assaltar as tabelas de vendas e os lares de toda a América – não apenas a negra. O sucesso chegou com força suficiente para que Joseph Jackson pudesse trazer o resto da sua família de Gary para Los Angeles onde, em Março de 1971, comprou a mansão Hayvenhurst. Em 1972, Dave Marsh escrevia na influente Creem sobre os Jackson 5 e não tinha dúvidas em elevá-los até ao topo da montanha Motown: «A Motown foi sempre mais conhecida pelos pequenos do que pelos grandes e os Jackson 5 não são excepção. Este é sem dúvida o seu melhor álbum; faz tudo o que uma colecção de hits da Motown deve fazer – incluindo talvez fazer-vos chorar se por acaso tiverem estado suficientemente ligados a uma canção num determinado período das vossas vidas. Os Jackson 5 são provavelmente a melhor coisa a acontecer na Motown neste momento simplesmente porque são eles que agora recebem os melhores arranjos, o melhor material, são eles os mais bonitos e por aí adiante. Eles são um dos poucos grupos da Motown que escapa ao manto ácido de Norman Whitfield e de Barrett Strong (embora também exibam alguma da mais forte influência de Sly Stone na Motown) e até agora também têm evitado a musiquinha de restaurante. E vê-se: eles fervilham como se fosse 1965, e isso é menos uma referência histórica do que comentário energético». Continua Marsh: «O Michael Jackson soa frequentemente como um Smokey Robinson adolescente, o que é um chavão, suponho, mas nem por isso menos válido. Há nele suficiente influência de Sly Stone para deixar claro que só tem 12 anos (10 quando «I Want You Back» e «ABC» foram gravadas)».

Em 1975, já dono de uma carreira a solo

Em 1975, já dono de uma carreira a solo

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Uma pérola chamada Michael

O potencial de Michael não passou despercebido a ninguém, mesmo tendo em conta que os Jackson 5 se tinham transformado num monumental negócio explorado em todas as vertentes possíveis numa altura em que o marketing pop ainda estava na sua infância, se comparado com o dos dias de hoje: canecas, lancheiras, roupa, séries de animação, especiais de TV, digressões e, claro, muitos discos número 1 fizeram do negócio Jackson 5 o mais rentável da Motown, superando mesmo a marca Supremes no departamento de contabilidade. Mas ainda assim, Gordy quis apostar numa carreira a solo para Michael que arrancou logo em 1971 com «Got to Be There» e a faixa título da banda sonora de Ben. O tema tinha sido pensado originalmente para Donny Osmond, do grupo rival dos Jackson 5 The Osmonds, mas o facto de se encontrar em digressão acabou por beneficiar Michael que assim iniciou com chave de ouro a sua carreira a solo.

Com a chegada da década de 70, o grupo começou a dar alguns sinais de cansaço. Embora continuassem capazes de criar sucessos – como o clássico «Hum Along and Dance», um verdadeiro hino para os adeptos do breakdance de todo o mundo – os Jackson 5 começavam a denotar alguns problemas, nomeadamente alguma insatisfação com as estratégias da Motown que insistia em apresentá-los como um grupo de crianças. Em 1975, Joseph negociou novo contrato para os Jackson 5 com a CBS que ofereceu um incrível royalty de 20%, cerca de sete vezes superior ao que era pago pela Motown. Gordy ofereceu resistência inicialmente, mas acabou por deixar o grupo partir para uma nova fase da carreira, embora os tenha obrigado a mudar o nome para The Jacksons. O grupo ainda estendeu a carreira até 1989, data do último álbum, 2300 Jackson Street, mas por essa altura já era evidente que Michael e o sucesso de Thriller tinham eclipsado qualquer hipótese de maior longevidade do grupo.

Michael Jackson gravou mais dois álbuns para a Motown depois de Ben, Music and Me de 1973, álbum que abria com um revelador «With a Child’s Heart», e Forever, Michael, de 1975, que continha temas como «One Day In Your Life» e um som mais refinado que haveria de ser uma boa antecipação do futuro que chegaria com o período CBS e o encontro com Quincy Jones.

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