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O “Apelo de Christchurch”

O “Apelo de Christchurch”

Portugal pode e deve dizer sim ao Apelo de Christchurch. Uma boa forma de o fazer pela positiva é aprovar uma Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital.

No seu recente relatório sobre o progresso alcançado na implementação das conclusões da Cimeira Mundial sobre a Sociedade de Informação, o secretário-geral da ONU, António Guterres, assinalou a urgência de combater as desigualdades digitais entre países e entre mulheres e homens, enfrentar as mudanças disruptivas no mundo do trabalho, na economia e na educação e pôr o potencial das tecnologias digitais ao serviço da realização dos direitos humanos. Em Julho de 2018 foi criado, também por iniciativa do SG da ONU, um Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital, presidido por Melinda Gates, com a missão de elaborar, no prazo de nove meses, um relatório de estratégia sobre o futuro digital à escala global.

Apesar de diversos esforços, não existe ainda uma Carta Internacional dos Direitos Digitais, aprovada no âmbito da ONU. Foram ao longo do tempo surgindo iniciativas de alcance desigual como as Declarações de Princípios das Cimeiras Mundiais da Sociedade de Informação (2003/2005/2008). O pai fundador da Web, Tim Berners-Lee, tem apelado sem êxito à elaboração de uma Magna Carta da Internet mundial.

Entretanto, o nome e a coisa deixaram de coincidir. Há hoje grandes regiões digitais (chinesa, russa, ocidental). A interacção faz-se segundo regras diferentes. Os Estados autoritários praticam eximiamente a censura digital. Na União Europeia temos estratégia digital, fundos de apoio ao investimento e ao acesso e uma malha de directivas e regulamentos que tentam assegurar o uso responsável e combater o extremismo.

Mesmo esse combate que pareceria óbvio em democracias depara com uma fractura entre os dois lados do Atlântico. Há poucos dias, o Presidente Macron e a primeira-ministra da Nova Zelândia Jacinda Ardern assinaram o Apelo de Christchurch. É um documento curtíssimo contra a violência e o ódio na Internet (https://www.appeldechristchurch.com). Enuncia um facto: em 15.03.19, o Facebook transmitiu em directo durante 17 minutos o atentado contra duas mesquitas. O terrorismo vitimou 50 pessoas e feriu 50. Ficou claro que uma das ferramentas que o Facebook proporciona a qualquer dos seus utilizadores pode ser usada perversamente.

A resposta do Presidente Trump ao Apelo de Christchurch é um rotundo não. Ninguém deve contar com os EUA para levar as grandes plataformas da Internet a erradicar conteúdos violentos e extremistas. Todavia, é o que está a acontecer e ocorrerá cada vez mais.

O Código de Conduta contra a desinformação subscrito pelas principais plataformas digitais está a ser aplicado. Provocou a criação de instrumentos contra pragas como as contas falsas, campanhas sujas e outras formas de batota digital (vide relatórios publicados no site da Comissão Europeia).

Há hoje milhares de moderadores pagos pelas redes a eliminarem conteúdos na Web, sem regras claras, nem recurso, nem transparência. Se demorarem 17 minutos a interromper uma transmissão em directo de um acto de violência incorrem em infracção disciplinar. 

Chegou-se a um ponto em que são os próprios responsáveis das plataformas norte-americanas a pedir ao Estado que defina regras. E citam como modelo a seguir o Regulamento Geral de Protecção de Dados. O “Direito das Plataformas” é uma via imperfeita.

Portugal pode e deve dizer sim ao Apelo de Christchurch. Uma boa forma de o fazer pela positiva é aprovar uma Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital, uma lei de protecção de direitos, liberdades e garantias centrada nas pessoas, consagradora de valores democráticos essenciais contra ameaças que não devem ser ignoradas.

Na própria revisão de 1997, o artigo 35.º da Constituição da República foi enriquecido com o aditamento de uma norma que garante “a todos” “o livre acesso às redes informáticas de uso público”, consagrando o primacial direito de livre acesso a redes digitais.

Não se justificaria fazer uma lei compilatória das normas que na ordem jurídica portuguesa consagram (alguns) direitos. Ao invés, haverá vantagens em enunciar um elenco diversificado e abrangente, que inove, clarifique e valha também como programa de ação vinculativo dos órgãos de poder. Um projecto de lei do PS já há. Venham mais!

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