observador.ptLaurinda Alves - 21 mai. 00:10

Os novos gladiadores

Os novos gladiadores

Tal como na Roma antiga se juntavam multidões para incitar ver morrer gladiadores, também os espetadores do Jeremy Kyle Show gostavam de ter sangue todas as manhãs e de ver inocentes lançados às feras

– Nem vais acreditar no que eles vão dizer de ti!

Eis uma frase assassina, explosiva e repetidamente sussurrada aos ouvidos de convidados mantidos em estado de alta ansiedade, nos bastidores de um programa de televisão, poucos instantes antes de entrarem em cena.

De um lado do palco entravam os que se opunham aos que apareciam, em simultâneo, do outro lado do mesmo palco. A estratégia era simples e o programa vivia do confronto puro. Quanto mais os convidados se digladiavam nesta nova arena em que se converteram certos reality shows, maior era o gáudio da assistência e mais disparavam as audiências televisivas.

O Jeremy Kyle Show era um talk show de tabloide britânico, produzido pela ITV Studios, apresentado por Jeremy Kyle, o pivot que foi despedido há pouco mais de uma semana, no dia 10 de Maio, depois da notícia do suicídio cometido por um dos seus mais recentes entrevistados. O programa que agora foi suspenso estreou na rede ITV em 2005, teve 16 séries e era o mais popular na programação diurna da ITV.

Líder absoluto de audiências, chegou a ter um milhão de espetadores e este facto terá contribuído para que todas as manhãs Jeremy Kyle se sentisse confortável e, porventura, certo no seu papel de atiçador dos novos gladiadores. Era ele que acendia todos os rastilhos possíveis e imaginários, era ele que ralhava, incitava e aplaudia todas as manifestações de raiva. Era ele que torcia para que houvesse cada vez mais braços de ferro com dor, lágrimas e ranger de dentes. E era ainda ele que aplicava castigos e dava sermões moralistas.

Agora, que o programa terminou da pior forma e, por isso, se multiplicam as notícias, os relatos, os testemunhos e até as queixas de pessoas que consideram que as suas vidas resvalaram, ou perderam sentido, desde que participaram no talk-show, percebemos facilmente que Jeremy Kyle se sentia todo poderoso e agia em conformidade. Gostava certamente do papel que desempenhava e, nessa lógica, fazia tudo para provocar uma escalada de tensão e retaliação entre os seus convidados.

Nunca vi nenhum episódio deste talk-show matinal nem preciso de o ver, retrospetivamente, para perceber o que estava em causa. Bastou-me ler a sucessão de notícias nos jornais nacionais e internacionais para compreender a sua estrutura e ter a noção do seu impacto daninho, brutal. Li também o mea culpa de Charlotte Scott, uma produtora que chegou a trabalhar para o programa de Jeremy Kyle e saiu por não se identificar com os métodos usados pelo pivot.

Na carta desta produtora, que o The Guardian tornou pública depois da suspensão do programa, podemos ler toda a sua vergonha por ter sido cúmplice de meia dúzia de programas. Apesar de ter tido uma curta experiência no Jeremy Kyle Show, declara que foi intensa e traumática. Permitiu-lhe ficar por dentro dos métodos usados por toda a equipa e agora ajudou-a certamente a ganhar coragem para juntar a sua voz aos que denunciam o seu apresentador.

Aquilo que chocou Charlotte Scott foi, curiosamente, o mesmo que conquistava audiências e gerava aplausos na plateia. A humilhação pública (e privada!) a que muitos convidados eram expostos, associada a devastadoras controvérsias transmitidas para o grande público, eram a substância do programa e aquilo que fazia dele um campeão de audiências.

Tal como na Roma antiga se juntavam multidões para incitar ao combate e ver morrer gladiadores (a comparação é de Charlotte Scott), também os espetadores do Jeremy Kyle Show esperavam sangue todas as manhãs e gostavam de ver inocentes ser lançados às feras.

Podemos dizer que não eram inocentes, pois ninguém obriga ninguém a participar num reality show e, muito menos, a subir a um palco onde já sabe que vai ser maltratado, mas sabemos que muitas pessoas que se candidatam a participar num circo destes o fazem em circunstâncias de instabilidade pessoal, fragilidade emocional ou até em fases de grande vulnerabilidade financeira. Acreditam que a visibilidade e a notoriedade lhes podem resolver as dificuldades.

Por outras palavras, ninguém que se sinta feliz e realizado, em forma e no auge da confiança, dá passos para esta espécie de cadafalso que são os programas que vivem da fraqueza humana, da miséria emocional ou da indigência moral de pessoas que têm ou tiveram problemas com álcool e drogas, para dar os exemplos mais comuns.

Segundo li, o programa também vivia de tensões familiares, de traições entre maridos e mulheres, de falhanços nos relacionamentos amorosos e outros temas que tais. Havia um detetor de mentiras (o tal que terá levado ao suicídio de Stephen Dymond, de 63 anos, depois de ter participado no programa por querer provar à noiva que não lhe era infiel, afirmação que o dito detetor de mentiras não considerou verdadeira) e supostamente também existia uma equipa para dar apoio psicológico às ‘vítimas’ do programa.

Não deixa de ser estranho o conceito de programa que, primeiro, cria as suas próprias vítimas, para em seguida se oferecer para curar as feridas que lhes provocou.

Noutra latitude e com intenções aparentemente opostas, de melhorar a confiança e a imagem dos participantes, foram criados outros programas que também fizeram muitos mortos e feridos. Programas de onde poucos escaparam com vida emocional e moral, quero dizer.

The Swan ou, em português, O Cisne, foi um reality show americano transmitido pela cadeia Fox em 2004 que deixou má memória e esteve no ar apenas um ano. A ideia era pegar em mulheres que se achavam feias (ou eram técnica e unanimemente consideradas feias, que ainda é mais devastador) e levá-las a fazer várias cirurgias plásticas em simultâneo.

Num par de meses estas mulheres eram sujeitas a verdadeiras sevícias que lhes eram servidas como se fossem ajudas e, para cúmulo, eram obrigadas a fazer a convalescença das cirurgias de pé, no ginásio, quase sempre com fome, para poderem perder peso e ganharem a forma física pretendida no timing ideal para a produção do programa.

No dia em que retiravam pontos e ligaduras para se voltarem a ver ao espelho, com toda a equipa de produção presente, no plateau, a exercer sobre elas uma pressão supostamente positiva, muitas destas mulheres confrontaram-se com uma imagem eventualmente mais bonita e mais perfeita, mas que em nada correspondia à sua anterior imagem. Ou seja, muitas delas não se reconheceram ao espelho e nunca mais recuperaram do choque.

O trauma deixou de ser a suposta ausência de beleza, para passarem a ser verdadeiras desconhecidas para si próprias. O pior e mais chocante é que também os filhos não as reconheceram e até os maridos ou namorados que viviam na expetativa de as ver mais bonitas, deixaram de se conseguir relacionar com alguém que nunca tinham visto antes. Eram as mesmas, mas para os familiares e os amigos, passaram a ser estranhas. Elas próprias passaram a ter graves dificuldades de relação consigo mesmas e muitas choraram em direto e continuam a chorar por essa identidade perdida.

Em resumo, sob uma falsa aparência de bem, ambos os programas se revelaram dramáticos. Um apostava em tentar a resolução de conflitos, outro garantia a beleza duradoura, mas nenhum falava verdade nem se preocupava verdadeiramente com os participantes. Tudo era feito em nome das audiências, para encher os bolsos de poucos e servir a vaidade e alimentar a voracidade de muitos.

Ninguém sabe ao certo quantas pessoas sofreram e ainda sofrem por terem participado nestes e outros reality shows, mas talvez a crueza dos suicídios e a crueldade com que muitos participantes são tratados e castigados ‘em direto’ sirva para evitar mais mortos e feridos. Ou até para acabar de vez com esta praga das séries que são como arenas de gladiadores e juntam legiões de pessoas que adoram ver sangue e humilhação.

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