expresso.ptexpresso.pt - 21 abr. 18:00

Falar do Ocidente

Falar do Ocidente

Num tempo em que a política se radicaliza, importa saber do que falamos quando falamos, por exemplo, de ideologia ocidental. Este livro de Rolf Petri é um bom princípio de conversa
Voltaire (1694-1778) é um dos autores clássicos europeus de filosofia política a que Rolf Petri se refere abundantemente

Voltaire (1694-1778) é um dos autores clássicos europeus de filosofia política a que Rolf Petri se refere abundantemente

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Não é raro hoje em dia darmos connosco no meio de uma discussão sobre os méritos relativos do Ocidente e do Islão. Geralmente a conversa acaba por ir parar à recordação do passado fanático do cristianismo, à Inquisição, à evolução secular das sociedades europeias, à não-evolução no mesmo sentido das sociedades árabes e muçulmanas, a culpa que nós temos nisso (por causa do colonialismo), à jihad como último bastião de resistência, ao Corão e às atrocidades que ele supostamente recomenda de forma perentória, às aventuras neoliberais de tempos recentes e a Israel. Assuntos profundos com implicações extremamente graves, discutidos com pouco mais informação do que a fornecida pela imprensa e as redes sociais. O que significa que termos como Ocidente, natureza, civilização e até ideologia são usados com bastante vaguidade, e as contradições são constantes, embora nem sempre apercebidas. Por exemplo, mesmo quem defende o direito dos muçulmanos a terem a sua cultura, com frequência deseja secretamente que eles um dia adotem partes essenciais da nossa. Mas o que é esta, afinal?

Conceitos como liberdade, democracia e Estado de direito significam o quê, e onde? Rolf Petri, um professor de História Contemporânea na universidade Ca’Foscari (Veneza), tenta responder no presente livro. Uma parte substancial da investigação apresentada é histórico-linguística. A conclusão a que ele chega — mais precisamente: da qual parte — não sendo completamente original, é algo surpreendente. O elemento essencial da ideologia dita ocidental é o elemento teleológico, salvífico: a ideia de que a História tem uma lógica e se encaminha para um determinado objetivo último. A origem disso é o cristianismo. As ideologias seculares da época moderna podem tê-lo ocultado durante algum tempo (embora as afinidades entre o comunismo e o cristianismo sejam notadas há muito), mas o protagonismo internacional dos EUA como defensor/promotor da democracia pôs essa raiz novamente à vista. O “universalismo missionário” regressou, com todos os seus riscos e possibilidades. Claro que, a par com a intenção salvífica, há intenções materiais mais ou menos evidentes. Aquando da primeira Guerra do Golfo, pessoas ligadas à Administração americana falavam abertamente em dois requisitos para a ação militar: uma missão moral (contrariar os desígnios de Saddam Hussein no Kuwait), e um interesse nacional que a justifique (proteger o petróleo da Arábia Saudita).

A prosperidade dos EUA caucionava a sua natureza abençoada e a da ideologia que o país defendia, com atos militares quando necessário.

Esse esquema mental repetiu-se em circunstâncias posteriores, no Golfo e não só. Mas nas últimas décadas algo mudou. A ascensão da China põe em causa a alegada relação necessária entre democracia e prosperidade. O contraste com democracias asiáticas que são menos prósperas, para não falar na própria decadência europeia, aumenta o ceticismo em relação à ideologia ocidental. O que torna ainda mais importante perceber a essência. Petri dá aqui proeminência aos autores clássicos europeus de filosofia política — Hobbes, Locke, Rousseau, Voltaire, Condorcet, Montesquieu, Marx, etc. — ressalvando que eles, mais do que inventarem ideias, apanham as que andam no ar e cristalizam-nas em fórmulas. Pela sua parte, mesmo rejeitando a escatologia e a noção de que a missão do Ocidente é combater o mal, admite que estima coisas associadas à tradição ocidental. “Defendo que é possível preferir o consentimento à coerção, por exemplo, ou a liberdade de expressão à censura e à vigilância, sem necessidade de uma base transcendente de direitos individuais”, escreve. “O princípio do equilíbrio entre poderes e o Estado de direito pode também ser visto como disposição legal básica que não precisa de uma legitimação mítica do poder soberano. Seria presunçoso pensar que, antes de lerem ‘não matarás’ no ‘Decálogo’, as pessoas vissem a morte como uma atividade divertida. Da mesma forma, seria presunçoso defender que as pessoas têm de basear-se num conceito transcendente da dignidade inerente à pessoa humana para defenderem a liberdade de expressão, o habeas corpus ou os julgamentos justos; também não devem necessariamente subscrever os axiomas da justiça natural para apreciarem por elas próprias as vantagens de uma divisão de poderes, capaz de reprimir o potencial para violência arbitrária.” O problema é saber quem é que na prática, sem uma fé transcendente (ou outra razão ainda suficiente), se continuará a empenhar em defender tudo isso. Nota: a tradução tem deficiências evitáveis.

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