expresso.ptexpresso.pt - 21 abr. 14:40

O lado oculto da Bauhaus

O lado oculto da Bauhaus

A história da mais revolucionária das escolas de arquitetura e artes tem sido escrita no masculino. Em Erfurt, Alemanha, uma exposição recupera o papel que ali tiveram as mulheres
Elisabeth Kadow, fotografada em 1929 por Annelise Kretschmer, chegou a Weimar com 18 anos e tornou-se uma das grandes artistas têxteis da Bauhaus.

Elisabeth Kadow, fotografada em 1929 por Annelise Kretschmer, chegou a Weimar com 18 anos e tornou-se uma das grandes artistas têxteis da Bauhaus.

FOTO MUSEUM FOLKWANG, ESSEN/CHRISTIANE VON KONIGSLOW

Era novembro e a manhã aconchegava-se no frio espalhado por aqueles arredores bucólicos de Erfurt, uma pequena cidade da Turíngia alemã. Bem no cimo de uma colina, uma pequena casa. Igual à banalidade de tantas outras na aparência formal, acolhe no interior o universo criativo de Margaretha Reichardt (1907-1984), artista têxtil, designer gráfica e um dos nomes maiores da Bauhaus, a mais revolucionária das escolas de arquitetura, artes e design criadas no século XX.

A casa, construída em 1939 e declarada monumento técnico em 1987 pela já inexistente República Democrática Alemã, onde Margaretha viveu até morrer, é hoje um museu (Angermuseum) com os teares de Reichardt na cave dinamizados por Christine Leister, uma antiga discípula que faz daquele território um tanto escondido uma espécie de metáfora da desconcertante realidade das mulheres da Bauhaus. Muito desconhecidas, não obstante a qualidade, a beleza e a inovação contidas no trabalho realizado, continuam a ser colocadas à margem de uma história construída no masculino. Quando se evocam os esteios da escola, avultam os nomes de Mies van der Rohe, Walter Gropius, Marcel Breuer, Josef Albers, Wassily Kandinsky ou Paul Klee. E, no entanto, a Bauhaus jamais teria sido um expoente de experiências e criatividade sem o contributo, tão decisivo quanto arrojado, de mulheres como Anni Albers, Gunta Stölzl, Lilly Reich, Marianne Brandt, Gertrud Arndt, Margaretha Reichardt, Johanna Hummel, Elisabeth Kadow e tantas outras que começam a ser resgatadas do esquecimento.

Oskar Schlemmer (1888-1943), pintor, escultor, coreógrafo e um dos mestres da Bauhaus, dizia que “onde quer que haja lã, haverá uma mulher a tecê-la”. A frase nada tem de inócuo, até pela mundividência revelada. Entronca, de facto, na ideologia dominante nos primeiros anos da escola, apesar das declarações de princípio efetuadas pelos seus responsáveis. Em abril de 1919, o primeiro programa da Staatliches Bauhaus Weimar, escrito por Walter Gropius, proclamava a aceitação de todas as pessoas de “boa reputação, independentemente da idade e do sexo”.

Não deixava de ser uma declaração arrojada para a época. As mulheres tinham acabado de adquirir o direito de voto com a nova constituição de Weimar, e vivia-se um tempo de mudança. O uso de calças e cabelo curto, a frequência dos cabarets, eram apenas alguns sinais de mulheres a quererem assumir a sua própria sexualidade e o acesso a novas profissões, como médicas ou juristas. No contexto de uma escola que se pretendia inovadora, não seria acertada a tentativa de imposição de uma qualquer política de sexos.

A prática revelou-se bem diferente. Apesar de não ser aquela a primeira escola mista da Alemanha, logo no primeiro curso, inscreveram-se quase tantas mulheres (51) como homens (61). Logo aí terão começado os problemas, com as mulheres a serem desviadas para cursos tidos como mais adequados à sua feminilidade. Numa carta dirigida a Annie Weil em fevereiro de 1921, Walter Gropius não podia ser mais claro: “Diz a nossa experiência não ser aconselhável às mulheres trabalharem nos ateliês mais duros, como de carpintaria. (...). Pronunciamo-nos basicamente contra a sua formação em arquitetas.” Gropius escudava-se em supostas questões genéticas para sustentar que as mulheres só conseguiriam pensar em duas dimensões, ao contrários dos homens, que pensam em três dimensões.

Gala Fernández, designer espanhola radicada em Milão sustenta não ser muito avisado culpar apenas “Gropius ou uma figura singular pela não aplicação dos princípios escritos sobre igualdade de género, mas toda a sociedade, que, naquela época, não estava preparada para a verdadeira igualdade. Havia demasiados preconceitos, mesmo para quem queria criar um mundo novo”.

Elisabeth Kadow, fotografada em 1929 por Annelise Kretschmer, chegou a Weimar com 18 anos e tornou-se uma das grandes artistas têxteis da Bauhaus 1 / 5

Elisabeth Kadow, fotografada em 1929 por Annelise Kretschmer, chegou a Weimar com 18 anos e tornou-se uma das grandes artistas têxteis da Bauhaus

wikipedia

Marianne Brandt, a primeira mulher a ser admitida no curso de serralharia... 2 / 5

Marianne Brandt, a primeira mulher a ser admitida no curso de serralharia...

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... e o bule, uma das suas peças icónicas 3 / 5

... e o bule, uma das suas peças icónicas

Gunter Lepkowski/ VG Bild-Kunst Bonn 2019

a pioneira Anni Albers, cujo trabalho mudou o mundo da tapeçaria, inventou novas formas de arte abstrata, e elaborou ensaios transformadores do design têxtil 4 / 5

a pioneira Anni Albers, cujo trabalho mudou o mundo da tapeçaria, inventou novas formas de arte abstrata, e elaborou ensaios transformadores do design têxtil

Estate of Horacio Coppola, Buenos Aires

Grete Stern, num autorretrato de 1943, frequentou a escola em Dessau; Gertrud Arndt, distinguiu-se pelos autorretratos encenados 5 / 5

Grete Stern, num autorretrato de 1943, frequentou a escola em Dessau; Gertrud Arndt, distinguiu-se pelos autorretratos encenados

Bauhaus Archive, Berlin/VG Bild-Kunst, Bonn 2018

Um dos exemplos maiores desta discriminação é o sucedido com Anni Albers (1899-1994), a primeira artista têxtil a expor individualmente no MoMA (1949), aluna de Paul Klee e um dos grandes nomes da Bauhaus. Ao escolher os ateliês, todas as suas primeiras propostas — vitrais, carpintaria ou serralharia — são recusadas com o argumento de que seriam demasiado extenuantes. Acaba por ir para tecelagem, uma área tida como mais feminina. A escolha radica também nos problemas de saúde de Anni que a perseguiram toda a vida. Uma doença genética provocava-lhe atrofia muscular. Aquele ateliê permitia-lhe estar sentada. Ainda assim, a própria Anni dirá anos mais tarde a Nicholas Fox Weber, durante o processo de elaboração do livro “The Bauhaus Group”, não ter ido com grande entusiasmo para a tecelagem “porque queria fazer um verdadeiro trabalho de homem e não algo tão maricas como trabalhar com fios”.

Marianne Brandt testemunhou o receio com que os homens viam mulheres entrarem em oficinas que à partida lhes imaginariam vedadas. Como a dos metais, área em que Brandt inovou de uma forma absoluta. Outro caso paradigmático é o de Gertrud Arndt. Chegou à escola com 20 anos, em 1923, carregada de esperanças. Frequentara antes um ateliê de arquitetura como aprendiz, mas vê serem-lhe bloqueadas todas as hipóteses de seguir o curso dos seus sonhos e acaba por se tornar uma grande fotógrafa.

É o percurso destas mulheres que pretende recuperar a exposição “Bauhausmädels” (“As miúdas da Bauhaus” numa tradução livre), que decorre até 16 de junho, centrada em Gertrud Arndt, Marianne Brandt, Margarete Heymann e Margaretha Reichardt. Segundo Kai Uwe Schierz, ligada à organização da mostra, será uma oportunidade de explorar as suas carreiras “enquanto mulheres e alunas da Bauhaus em Weimar e Dessau”.

Não obstante todos estes exemplos, que sugerem a existência de um lado oculto da Bauhaus, seria redutor entender a escola como um espaço em geral hostil para com as mulheres. Como sublinha Gala Fernández, na Bauhaus foi possível um conjunto de mulheres assumirem um crucial papel na história da arte. Essas mulheres, prossegue, “podem ser consideradas os cérebros e as almas que iluminaram mudanças sociais que florescem agora e permanecerão sempre vivas”.

Não por acaso, para os seus estudantes, homens ou mulheres, a Bauhaus significava uma mudança radical nas suas vidas. Nesse sentido, como explica Kai Uwe, o termo “miúdas da Bauhaus, era visto como um cumprimento ao expressar uma admiração silenciosa “por aquelas jovens mulheres que corajosamente tinham abandonado o seu habitual papel de donas de casa, lojistas ou estenógrafas para rasgarem um novo e criativo futuro”.

O Expresso viajou a convite do Turismo da Alemanha

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