visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 24 mar. 19:02

"Um filho stressado é menos autónomo, independente e responsável"

"Um filho stressado é menos autónomo, independente e responsável"

Mário Cordeiro, o pediatra mais famoso do País, alerta para os perigos de se educar sob o domínio do stresse e lembra que "as crianças vivem com excesso de vigilância”

No gabinete do pediatra Mário Cordeiro, os livros infantis partilham as estantes com os peluches familiares. Nas paredes, há pinturas abstratas feitas pelo médico que presidiu à Associação para a Promoção da Segurança Infantil, publicou dezenas de livros e manuais sobre bebés, crianças e adolescentes, e tem uma cadela adotada, estando também ligado à Provedoria dos Animais de Lisboa. Aos 63 anos, o mais novo de oito irmãos e pai de cinco filhos optou por reformar-se da Função Pública e dedicar-se apenas à clínica privada. O ponto central da conversa não foi o romance ou a poesia, paixões que lhe dão atualmente muito gozo, mas antes o seu novo livro, que pretende desafiar-nos, a todos. Pais Apressados Filhos Stressados é sobre o tempo que não temos mas podemos ter, se conseguirmos fazer escolhas conscientes e desfrutar da vida, enquanto dura, com quem amamos – sem despachar tudo e todos nem andar a reboque, lamentando: “Prefiro a adrenalina dos dias de semana ao stresse dos fins de semana.”

Comecemos pelo fim: a família vista pelos olhos do cão...
Quis mostrar um casal e três filhos, numa sexta-feira à noite, exaustos, cada um com o seu programa a colidir com o dos outros e a discutir quem tem razão. O cão observava, sem ter a noção do tempo dos humanos. Tem aquilo que advogo no livro: ouvir, parar, pensar e refletir antes de fazer e de ser dono do tempo.

O mal-estar infantil e juvenil, aliviado com fármacos, por vezes em excesso, pode ser evitado?
As chamadas drogas sempre existiram. Podemos drogar-nos até com trabalho e desporto. Fugimos à realidade quando ela se torna pouco suportável. Temos de aceitar que somos finitos e que o tempo é escasso. As fugas para a frente criam a disrupção dos ritmos biológicos do animal que somos. Mudar o quotidiano implica parar e pensar.

O que pensarão as mulheres portuguesas que, à luz de um estudo, só têm 54 minutos do dia para elas?
Embora aquém da igualdade de direitos de género, estamos melhor do que há 40 anos. Se nós e as instituições políticas e laborais assumirmos isso, chegaremos à meta em menos de cinco gerações.

Como arranja tempo para fazer tudo o que gosta?
Faço o que me dá prazer. Tenho este grau de liberdade, porque lutei por isso. Quando os meus filhos eram pequenos, não havia sábado sem festa de aniversário. Se era possível iam; quando não era, não iam. Eu sempre lhes disse: não são menos pessoas por não irem a todas. Ir a todas e correr à procura nem se sabe do quê cria um stresse enorme e impede o desfrutar das coisas. Ser humano não é ser perfeito; é aperfeiçoar-se e ter gozo nisso.

Ter sofrido um enfarte contribuiu para ter uma vida mais tranquila?
Acho que não. Penso neste tema há algum tempo e tenho um estilo de vida tranquilo. O problema de saúde teve que ver com uma herança genética.

No livro, retrata os adultos como seres que vivem uma angústia existencial e que a transferem para a prole. O que se passa?
Fui buscar o livro O Macaco Nu (Desmond Morris, 1967) para ilustrar isso mesmo. Construímos sociedades bem diferentes das dos nossos antepassados, mas continuamos a ser mamíferos com crias dependentes, incapazes de fazer escolhas.

Refere-se ao paradigma do sucesso de que tanto se fala?
O ter e o fazer estão a dominar a sociedade. O desejável é que pais e filhos cheguem a casa e que desliguem durante um bocado, envolvendo-se em atividades calmas. É preciso perceber o que queremos da vida e deixar as comparações. “Quero um carro igual ao do vizinho.” Costumo usar o nonsense. “Sabe uma coisa? Vou arranjar uma betoneira”, disse uma vez a uns pais. Eles ficaram a olhar para mim, perplexos. “O meu vizinho também tem uma.” A frugalidade é preferível à ganância do ter por ter: quando se tem algo, isso perde o interesse.

Há quem diga que as obras sobre a parentalidade geram sentimentos de culpa e de inadequação nos pais. Confirma?
Nos meus livros, procuro tranquilizá-los, mas uma pessoa que leu este título disse-me que ficou inquieta. A ideia é mesmo essa: dar mais poder aos pais, sem que eles tenham receio de reconhecer os seus erros. Quando se queixam do comportamento dos filhos, sugiro que pensem como uma empresa, que reúnam o conselho de administração num sítio agradável e conversem, usando até o método de análise SWOT (Forças, Fraquezas, Oportunidades, Ameaças), e que descubram, por exemplo, “uma maneira de fazer com que o Zé se torne mais persistente sem ser casmurro”.

Sobre a hiperatividade: doença, sintoma de mal-estar ou, como se queixam alguns adultos, falta de educação?
De facto, há uma ideia de que tudo o que se mexe é hiperativo e de que todos os que sonham têm défice de atenção. Retirando os casos de dispersão e a falta de concentração, com hiperatividade sem aspas, posso dizer que as crianças vivem numa contenção enorme e com excesso de vigilância. Em vez de apanharem ar puro e de brincarem na rua, passam o tempo em espaços fechados, e até os prisioneiros têm mais liberdade do que elas, como se disse num estudo recente.

Pertence a uma família numerosa e foi por várias vezes pai. Como lidava com as birras e com os maus comportamentos?
Tentamos sempre definir regras e explicar por que razão elas existem. Dizer só “Manel, não faças isso” resulta em ameaças e em castigos – “ficas sem ver televisão durante uma semana” – que não se cumprem. Mesmo que a criança obedeça, fica à espera de que o regime caia para fazer o que quer. Freud explicava isto bem. No território da fantasia, há total liberdade, posso pensar que sou serial killer, mas o polícia interno refreia-nos e permite desenvolver a empatia: “Extirpar pessoas não é bom. E mesmo que o seja, já pensaste no que a pessoa sentirá?” O bom polícia vem dos pais. A atitude deles permite que a criança ultrapasse a fase narcisista e interiorize que há coisas que não pode fazer.

O que os pais precisam de saber para estar de bem com a vida e facilitarem a dos filhos?
Parar para pensar, sem medo. Ser frugal e pôr fim à ânsia, quase ganância, do ter. Contemplar, deleitar-se, descobrir a vida. Nas relações com o próximo, não criar um colete de forças sentimental à volta dos outros por terem opiniões divergentes. Apreciar as microexpressões, o silêncio, as pausas, como numa composição musical que não é possível sem elas.

Qual a fatura de crescer a despachar, em modo acelerado?
Um filho stressado é menos autónomo, independente e responsável. Não somos donos deles nem eles são réplicas nossas, mas podemos influenciá-los através de valores que lhes damos. Se inventámos as máquinas foi para nos permitirem dedicar-nos à criatividade, à fantasia e à arte. A ligação do corpo com a Natureza, por exemplo, está completamente esquecida na escola. É quase um crime.

É também um alerta que faz aos professores.
Durante quase 40 anos fui professor, sei que eles nem sempre são bem tratados face à importância que têm. Porém, ao entrarem numa aula, desliguem dos problemas e descubram coisas novas com os alunos. Lembro Agostinho da Silva, a quem perguntaram sobre o que iria falar numa apresentação, que respondeu: “O que quereis saber?”

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